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Feitiço, Feitio, Fetiche.

Foto do escritor: Eduardo RegisEduardo Regis

Primeiro, os créditos. Este ensaio é uma reação provocada pela leitura de “Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches” de Bruno Latour. Agora, um aviso. Trata-se apenas de uma breve consideração. Não há espaço e contexto para grandes elucubrações, mas espero que os leitores sejam incentivados a ler o livro de Latour.


O fetichismo é uma coisa curiosa. Diz-se que o fetichista adora o que ele construiu e, por isso, aponta-se o dedo para ele e o acusa de (na melhor das hipóteses) inconsistência: “Mas se você moldou com as próprias mãos o ídolo que adora como ele pode ser um Deus? Ou você o construiu ou ele é Deus”.


Ignora-se que o “homem” foi feito “à imagem e semelhança” de Deus (“O que está acima é como o que está abaixo”, em outras palavras que expressam também esta ideia). Ora, se somos criaturas da mesma natureza do nosso criador e a fonte de qualquer manifestação sagrada vem desta divindade (qualquer que seja), não somos nós mesmos sagrados e sacralizadores? Não somos nós mesmos Deuses?


Olhemos a emanação do divino que se precipita primeiro em um ponto e que depois vai se expandindo até chegar a um momento de cristalização na qual se torna tudo que conhecemos. Esta emanação torna-se, inclusive, nós mesmos. “Não há parte de mim que não seja dos Deuses”. A emanação cristaliza, mas sua natureza não muda.


De outra maneira, o fiel que constrói um ídolo ou que “faz seu santo”, como no Candomblé (Exemplo que Latour usa bastante), ele não o faz pela ação do próprio Deus? A mente ocidental, programada pelo monoteísmo cristão de revelação e de intermediadores não compreende com clareza o fazer de um Deus. É preciso despir-se de certos vícios. Tentemos.


Fazer um santo, fazer um Deus, ou coisas assemelhadas, tratam de atos ritualísticos envolvendo uma série de materiais e passos determinados que permitem que certa divindade se manifeste e tome “corpo”. No Candomblé, isto é fundamental para colocar o santo na cabeça de um adepto. É realmente um “fazer” da divindade, pois sem a ação humana não haverá o Deus.


Continuando com o exemplo do Candomblé, sabemos que alguns santos não são “feitos”, pois a maneira ritualística de se “fazê-los” foi perdida durante o tempo. Sem alguém que saiba como proceder, simplesmente, o Deus não pode ser colocado na cabeça de uma pessoa. Isto tudo parece apontar para uma visão tecnicista. Entretanto, embora exista sim técnica, estamos falando de algo além. O fazer do santo é um segredo iniciático. Não é mera habilidade adquirida. É segredo. É uma maneira de se construir condições ideais para a manifestação viva do divino. Ou seja, é um processo que tem um componente técnico e um componente invisível.


A questão (que Bruno Latour coloca bem) é que é o que é feito (a divindade) que permite o próprio fazer. Ainda, que o que é feito vai além de quem está fazendo. Assim, o ato de construir um ídolo ou de “fazer um santo” é um ato que gera aquilo que nos impele a começar o ato em si. O objetivo do fazer é idêntico a sua motivação, de certa maneira. Ou, pelo menos, vem do mesmo “local”. Este construir, portanto, não segue um objetivo de resolução de problemas, mas segue uma necessidade de completar um círculo de “eterno-retorno”.


O fetichismo parece ser então uma maneira de alimentar um sistema circular, ao mesmo tempo em que “eleva” o construtor do fetiche. Afinal, o ato de construir uma divindade, o ato de sacralizar, transforma o operador. Aproxima-o do Deus. Então, longe de ser uma contradição, o “fetichismo” (agora entre aspas, pois é um termo de origem pejorativa) é um método de sacralização ou conjunto de atos sacros que reforçam a presença da divindade tanto no visível quanto no invisível.


Assim, ao invés de apontarmos dedos, talvez seja melhor fazermos uma reflexão: Será que não somos todos fetichistas (o católico realmente separa a imagem de Cristo do Cristo?)? Se não formos, não seria o caso de passarmos a ser? Será que esta noção de que nossas mãos e nossas criações podem nos aproximar do divino e ao mesmo tempo trazê-lo para mais próximo de nós não pode nos ser interessante?


Não sei quanto a vocês, mas se alguém me chamasse de fetichista, acho que eu tomaria como um elogio.

Imagem: pixabay

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