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Foto do escritorRaphael Kakazu

Ensaios: A Mão Direita do Diabo

Antes que o mundo acabe,

Deita-te e prova

Esse milagre do gosto

Que se fez na minha boca

Enquanto o mundo grita

Belicoso…E nos cobrimos de beijos

E de flores……antes que o mundo se acabe.

Antes que acabe em nós

Nosso desejo.


O prazer sempre nos foi negado. É como se algo dissesse que é errado, que é pecaminoso e que de algum modo nos torna menos próximos da ascensão. Você precisa sofrer para se tornar digno de algo.


Na infância você sofre para aprender a andar, falar, fortalecer seus ossos, aperfeiçoar sua escrita, formar todos os dentes e aprender, você sofre para aprender, caso contrário jamais dará valor ao aprendizado. Na adolescência você sofre com os hormônios e com a puberdade, sua pele fica horrível e tudo parece um interminável caos, você sofre com os estudos para poder adentrar numa faculdade pública porque é isso que a sociedade espera de você e você sofre por mais inúmeras coisas porque a vida está à flor da pele. Na vida adulta você sofre porque não está financeiramente estável ganhando os cem mil anuais; você sofre porque não está casado e com uma família; você sofre porque odeia o que faz e mesmo assim dizem para você continuar, afinal, terá uma velhice mais tranquila com aposentadoria e então poderá “curtir” a vida. Essa será a recompensa pelo seu sofrimento. E na velhice, você sofre porque passou uma vida toda num sofrimento esperando por uma recompensa que nunca chegou.


E assim, vivemos a vida condicionados ao sofrimento, porque o sofrimento é a mão esquerda de Deus, o mal necessário para moldar o homem com dignidade e grandeza. E por tantos anos isso foi repetidamente cravado no nosso ser que hoje carregamos uma herança coletiva de que tudo na vida vêm através do sofrimento, da abstinência e da labuta. Leva-nos um tempo para ressignificar tudo isso, mas esse trabalho é crucial para podermos entender a grandeza da vida e a empatia pelos que estão ao nosso redor. Vejam comigo:


Na infância você sente prazer quando percebe que não precisa de alguém para chegar até o banheiro, para levar comida até a própria boca, para dizer onde está doendo e as coisas que te agradam, você sente prazer porque está descobrindo um mundo todo de possibilidades e tudo parece assustadoramente encantador para ti. Na adolescência você sente os prazeres de conhecer seu próprio corpo, de se entregar ao primeiro amor, sente o prazer do primeiro beijo, do primeiro sexo, das nuances de uma vida adulta e independente. Você sente os prazeres da amizade, a criação de laços e juras eternas, você sente prazer em tudo porque está à flor da pele. Você sente prazer em descobrir sua vocação e consequentemente o seu lugar no mundo. Na vida adulta você sente os prazeres de ter seu próprio dinheiro, de pagar seu próprio drink, de comprar algo para você, de viajar, e de apaixonar-se milhares de vezes. O prazer de ser quem é e fazer o que faz, seja lá o que for. E quando ficar mais velho sentirá prazer da vida que deliciosamente se viveu e, consequentemente, se sentirá pronto para embarcar dessa para uma outra prazerosa jornada.

Se te pareço noturna e imperfeita

Olha-me de novo. Porque esta noite

Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.

E era como se a água

Desejasse

Escapar de sua casa que é o rio

E deslizando apenas, nem tocar a margem.

Te olhei. E há tanto tempo

Entendo que sou terra. Há tanto tempo

Espero

Que o teu corpo de água mais fraterno

Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez.

E mais atento.


E o que tudo isso que mais assemelha-se a uma análise psicanalista de um coach recém-formado pelo Instagram tem a ver com tudo o que venho escrevendo através desse Espelho? O que isso tem a ver com a magia, com a bruxaria, com a feitiçaria e com os sortilégios dos quais eu tanto falo em poesias e ensaios?


A resposta é simples, mas, como tudo nessa vida, não unânime. O ícone literário chamado de Sabbath das Feiticeiras ou Hexentanz foi retratado como o ápice onde culmina o encontro de todos os excessos e prazeres da existência carnal; a liberdade da nudez, o deleite da comida, a embriaguez da bebida, o gozo do sexo, a ascensão de ser escolhida como Rainha do Sabbath, o poder dado pelo próprio Diabo ao marcar a pele com seu terceiro chifre e o êxtase extático da dança com a pele embebida de alucinógenos.


Logo, o feiticeiro, a bruxa, a mulher destemida, o homem sábio, etc. são os hereges por irem contra o fluxo moral e ético de tudo o que foi imposto. Orgulhar-se do prazer e exigir ser satisfeito(a) é parte do universo desses seres que caminham por tantos outros mundos. Sentir prazer e colocar-se no êxtase é um estado onde tudo se torna possível; e isso não é feito somente em dias sabáticos sob os plenilúnios mensais, isso deve ser a vida que está sendo vivida como um todo.


Bruxaria não é sobre ser a mão esquerda de Deus e a oposição necessária para que o mundo continue a girar promovendo mudanças e revoluções, mas é ser a mão direita do Diabo e fazer com que a sua vida e a vida dos que estão ao seu redor seja a mais prazerosa possível, ao se reunirem para beber e rir que os assuntos sejam as conquistas e os gozos da vitória e não a decadência e a derrota, sejam de opositores ou não. E ao escrever sobre isso não nego o papel do sofrimento, a mão esquerda de Deus, muito pelo contrário; eu reconheço sua existência e a imensidão do seu poder; porém, dentro do que me compete e dos limites do meu domínio, eu escolhi seguir outro caminho e incentivo os meus a seguirem também.


Agora, se vamos ou não conseguir manter-nos nesse estado cem por cento dos dias de nossas vidas é uma outra história; mas não nos é negada a oportunidade de tentar e de, possivelmente, sairmos vitoriosos. E quem me inspirou nesses textos foi Hilda Hilst, uma das mais importantes dramaturgas, poetisas e cronistas brasileiras porque suas obras são recheadas de misticismo, insanidade e erotismo; indico a todos a leitura porque uma opinião pessoal sobre leituras é que “não se lê livros sobre bruxaria, mas se lê sobre bruxaria em qualquer livro.”

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