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Foto do escritorRaphael Kakazu

Ensaios: Élitisme

“A vida é uma sombra errante; um pobre comediante que se pavoneia no breve instante que lhe reserva a cena, para depois não ser mais ouvido. É um conto de fadas, que nada significa.”

Assim disse Shakespeare em um dos atos de Macbeth mostrando uma das maiores fragilidades o ser humano: a vontade de se sentir especial.


E como tudo que, de certa forma, reflete os mistérios humanos, encontramos hoje dentro da própria bruxaria um debate um tanto equivocado, senão superestimado, que é o elitismo* dentro do discurso sangue-bruxo, alma-bruxa, chama-bruxa, marca de Cain, seja lá como queria chamar. Aquela vontade de pertencer a um grupo exclusivo ou aquela raiva por não pertencer a algo que se julga exclusivo, precisamos lembrar que tudo são vias mão de dupla (e antes de qualquer coisa, vamos deixar bem claro de que não estamos falando de política ou classe social, muito menos de raça, mas sim de formas ou composições de sociedade e/ou comunidade dentro de um nicho muito bem recortado; a política, a exclusão, a inclusão e afins são debates para outro dia).


De fato, existe uma liturgia por trás dessa dita herança que acompanha a imagem da bruxa e podemos encontrar isso nos relatos sobre quando Azazel e sua corte se deitam com as filhas dos homens dando origem a híbridos dotados de poderes; ou quando Aradia, filha de Diana, desceu à terra para ensinar a Arte da magia para os menos privilegiados. Seja qual for a fonte da sua busca, sempre haverá algo que liga a bruxa, a feiticeira, aos mistérios de desconhecidos poderes e de como eles chegaram até ela, dando, consequentemente, a suposta “herança” que muitos alegam ter. Contudo, a marca na alma de uma bruxa existe e ela é tão perceptível como você e eu.


Então, quero propor uma pequena reflexão sobre isso, porque à minha interpretação, essa marca não é tão difícil de ser identificada, e para ilustrar isso vou colocar um exemplo bem corriqueiro que pode acontecer ou ter acontecido com todos nós.


– Quantas vezes conhecemos alguém despretensiosamente, em um círculo social, em um encontro profissional ou até mesmo em uma festa, e essa pessoa em questão capta o nosso olhar de forma que toda a nossa atenção é voltada para ela. O mundo parece girar mais devagar e os sons são abafados e essa pessoa se torna o centro de tudo o que está acontecendo. E, então, temos a sensação de que ela possui algo a mais que as outras, algo especial.


Pois muito bem, é essa a sensação que se dá quando vemos alguém que possui a chamada “alma-bruxa”; ela muitas vezes pode não saber que a possui, mas o mundo nota e ela por si promove mudanças quase que sobre-humanas na vida dessa pessoa, sem feitiços, sem bruxedos, sem encantos, mas, não sem esforço e dedicação. E dito isso, ouso afirmar que essa pessoa que não faz ideia do que carrega manifesta muito mais magia e poder do que muitas “netas de bruxas que não foram queimadas”.


E, então, começam os nossos problemas com os inúmeros discursos sobre o elitismo dentro da bruxaria onde “nascer bruxa” se tornou quase opressor ou, como disse, elitista. “Não se vira bruxa” é uma frase que não está errada quando usada no contexto apropriado, porque como no exemplo que dei acima uma pessoa não consegue desenvolver esse tipo de fascínio; é algo nato que nasceu com ela.


Agora, um ponto importantíssimo, nascer ou não nascer com essa “marca na alma” te torna alguém especial ou privilegiado? Óbvio que não, porque você vai ter que lutar como qualquer ser humano por uma vida melhor; vai ter que pagar contas, vai declarar impostos, vai ter crises de identidade e tudo mais o que acarreta a vida no século vinte e um. De nada vai adiantar a sua “herança” ou seus “poderes” se com eles você não consegue promover mudanças na sua vida, para melhor por se assim dizer (não entraremos naquele debate de malefícios e imprecações porque isso é contexto para outro assunto que também virá em um outro dia).

“A excessiva confiança é a inimiga capital dos mortais.”

Logo, confiar, que só porque você acredita que possui uma “chama-bruxa” você é alguém que vai passar na frente da fila do caixa na vida, você está redondamente enganado. Não se usa a bruxaria como muleta ou como “passe-livre”; seu verdadeiro poder é manifestar uma grande mudança, um “upgrade” na sua realidade seja como for.


Então, se deixar intimidar, se auto diminuir, ou até mesmo agredir o outro pela opulência do feitiço feito, pelo discurso poético de um hino recitado em sua língua mãe ou por uma multidão que vive sob um mesmo preceito não faz sentido dentro da vida de alguém que está vivenciando a bruxaria. Sabe porque? Porque essa pessoa sabe quando uma mudança está ocorrendo e quando um espetáculo está sendo apresentado, e principalmente, ela reconhece a própria soberania e o seu próprio poder sem precisar procurar conforto ou reconhecimento em reflexos alheios.


E é por esse motivo que muitos dizem que a bruxaria não é um caminho para todos, porque assumir o seu papel no mundo e arcar com o ônus e o bônus daquilo que se faz é uma responsabilidade; e quem deseja grandes poderes precisa estar preparado para grandes responsabilidades.


* O elitismo provém, não da prosperidade ou de funções sociais específicas, mas de um vasto e complexo educacional e cultural, corpo de símbolos, inclusive de condutas, estilos de vestimenta, sotaque, atividades recreativas, rituais, cerimônias e de um punhado de outras características. Habilidades e aptidões que podem ser ensinadas são conscientes, enquanto o grande vulto de símbolos que forma o verdadeiro elitismo é considerado utópico como a própria República de Platão e Aristóteles, não é deste mundo, portanto é inconsciente. – Political Anthropology – An Introduction, Massachusetts: Bergin & Garvey Publishers, l983, pg. 112.

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