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Foto do escritorJessica Puga

Encontros com a bruxa: as bruxas e o pássaro


Justo eu, que te procuro a vida inteira, quantas vezes já não te encontrei em momentos em que eu menos esperava? Na teoria a gente sempre espera que esses encontros sejam especiais, rebuscados e mágicos, mas quando olho para trás percebo que foram momentos curiosos, oníricos e até desavisados; pelo menos nos que pude vislumbrar um pedacinho que fosse de suas faces.


Às vezes bastou um olhar, uma sensação, uma palavra, e esses momentos marcaram. Esse é o segundo de três pequenos causos: frames pontuais que no fantástico ou na banalidade que se apresentaram me catapultaram para novos caminhos interiores. Três breves encontros, com três misteriosas mulheres e suas principais fases.


Cheia


Era noite. Eu podia ver a luz pálida da lua por entre as folhagens. O chão estava úmido. Choveu a pouco? Tentava buscar em minha memória algo que explicasse o que eu poderia estar fazendo ali, mas não consegui me lembrar de nada.


Uma mulher estranha estava parada alguns metros a frente, ela fez menção de esconder o rosto quando sentiu que me aproximava, mas parou em meio a ação, e invés disso olhou diretamente nos meus olhos, como se cavasse ali uma vala cada vez mais profunda. Ela já não era tão jovem. Trazia em sua postura o peso circular das estações. Um pequeno pássaro escuro pousou em seu ombro esquerdo e ela o acariciou no bico. 


– Está pronta para fazer seu juramento?


Quando ela falou, era o pássaro quem falava e ele tinha na voz a doce melodia dos rios, o tom elétrico das tempestades e o ritmo de todos os passos que sobre a terra já foram dados. Eu não podia dizer não a ela. Senti meu corpo me levar um pouco mais para perto. Ela não era bonita, mas também não era de todo desagradável. Ela tinha uma forma definida? Ou parecia que tudo nela mudava a cada vez que eu olhava? Quanto mais eu tentava entender a razão do meu fascínio, mais parecia que aquela troca não era algo para ser feito na base da razão. “Ao que estaria jurando?” – gostaria de ter perguntado se tivesse qualquer domínio sobre as minhas reações.


Um som alto quebrou o silêncio, e meu coração deu um salto. Agora uma outra mulher estava parada bem do meu lado: eu tive a clara impressão de que ela ouvia o que eu pensava.


– A vida – disse ela – Você estaria jurando a vida.


A segunda mulher não deixava dúvida, sua beleza era notável. Começou a me circular, me olhando, me tocando de leve e sentindo meu cheiro. E aquilo foi me deixando inquieta. 


– Que foi? – disse ela dengosa, com um sorriso esperto no rosto.


A mulher com o pássaro no ombro também sorriu. Seu sorriso fez um barulho que encheu todo o ar, como um suspiro de conforto de uma cria recém-alimentada. A outra, enfim, se dirigiu a sua presença. As duas se olharam longamente. Eu podia sentir a atmosfera elétrica que se formava. Ao olhar inocente do observador, elas pareciam ser feitas de substâncias perigosas de serem misturadas. A impressão que dava era de que a qualquer momento elas poderiam se engajar em uma luta eterna e ritmicamente equilibrada. Algo dentro de mim quis pular para fora quando vislumbrou essa possibilidade. Precisava fazer alguma coisa, me colocar entre as duas, eu precisava tentar…


O momento passou e as duas e aproximaram, se enroscando em um longo abraço. Senti todas as minhas cordas de preocupação se afrouxarem como os laços de uma vergonha infantil e apertada. Elas só se separaram depois que eu já tinha soltado minha vergonha também. Me voltaram o olhar:


– Faça a sua pergunta. – disse a mulher pelo bico do pássaro.


– Ao que estaria jurando? – respondi tentando manter o olhar nos olhos minúsculos da ave, já que era desconfortável encará-la.


– Quer mesmo saber?


Eu teria dito que sim. E a outra já sabia disso, pois antes mesmo de responder a pergunta, tomou para si a palavra:


– Tanto que aqui estou. Eu imagino que esteja ciente das implicações que – nesse momento ela parou e se deliciou em uma longa risada – não, não claro que não está, vocês nunca estão. Bem, em alguns raros momentos…


A outra interrompeu o discurso.


– Venha até aqui. – disse pelos seus  olhos e pelo bico do pássaro.


Com a falta de gravidade de um sonho, fui me aproximando dela. Quanto mais perto ficava, mas distante pareciam minhas próprias histórias. Quando me vi a um palmo de seu rosto já não tinha mais obrigações, rosto, personalidade, nem um nome e nem mais nada a zelar por ele. Ela tocou minha testa com seus lábios enquanto o pássaro nos circulava. Por onde ele passava, deixava uma corrente líquida e iluminada. Aquilo durou só alguns poucos segundos, mas quando acabou tudo tinha mudado. Eu sentia o movimento pulsar em toda parte e não tinha nem interesse, nem obrigação de ser qualquer coisa ou estar em qualquer lugar.


Senti minhas pernas fazerem sozinhas o trabalho de me deslocar com pequenos saltos de inocência renovada até me ver diante da outra mulher. Ela fez sinal para que eu chegasse mais perto, me encontrando no meio do caminho com um longo beijo nos lábios. Era como se tudo aquilo que tivesse acabado de ganhar fosse aos poucos sendo retirado. Se o presente da vida me encheu o copo rápido, o da outra parecia com drenos de sangue variados, gotejantes e intermináveis. Não sei por quanto tempo fiquei ali, sentindo sua boca em meus lábios, mas sei que depois do que me pareceu uma eternidade, parei de resistir e finalmente entendi que também poderia amá-la; só assim me libertei de seu enlace. 


Dei alguns passos para trás, cambaleante, como quem retoma a pisada. Logo que reencontrei o equilíbrio, fiquei de pé e encarei as duas de frente – agora com uma postura muito menos encabulada. 


– Se você é a vida – disse me referindo a mulher pássaro – você é…


– A sorte. – disse ela já abrindo um sorriso de escárnio. – Agora vá, e continue fazendo perguntas para as quais não existe só uma resposta.


O meu desejo era ficar para sempre – ali na presença das minhas amadas – mas por seu tom eu sabia que o momento tinha passado. Retribui o sorriso e me despedi em silencio das duas mulheres. Me virei e deixei meus novos passos me guiarem para longe daquele lugar. Só uma vez tive a pretensão de olhar para trás, mas ao mesmo tempo em que minha cabeça se virava, outra força desconhecida a puxava de volta para frente, me dizendo para prestar atenção no caminho. Nesse lapso de segundo pensei ter visto uma única figura solitária, no mesmo lugar onde eu as havia deixado.


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