– “Mãe, onde está a caixa de primeiros socorros?” – acordei de sobressalto com voz de Hugo quebrando o silêncio do quarto enquanto sacudia de leve meu ombro direito. Ainda embriagada de sono sentei-me na cama, apertando os olhos naquela escuridão cortada pela fresta de luz que vinha da porta. – “Acho que… o que foi que aconteceu!?”
Ele se sentou ao meu lado, e virando ligeiramente o rosto para a fraca iluminação vi que o sangue lhe descia abundante sobre a testa. Levantei-me apressada, calçando os chinelos em direção à sala. Ele me seguiu em silêncio, com a cabeça baixa e a mão tentando conter o sangue que empapava o pijama. Pelo corredor pude ver seu quarto, e quase ia passando por ele quando algo me fez parar e retroceder um passo.
– “Pelos céus! Mas o que aconteceu aqui?” – foi só o que pude dizer, quase que num sussurro, com o ar escapando dos meus pulmões enquanto o coração parecia saltar da boca. As roupas de cama estavam espalhadas ao chão, e o colchão completamente torcido sobre o estrado. E sangue, muito sangue pelo chão. Porém, o que mais me chocou foi ver o sangue pelas paredes, em todas as quatro paredes até bem perto do teto. Todas pareciam terem sido pintadas a dedo no formato de tridentes. – “Não sei. Não me lembro de nada disso”– ele me respondeu desolado.
Estranhamente ele não teria desperto apesar de ter batido com a cabeça com força suficiente para formar cortes e hematomas. Também estranhei que eu mesma não tivesse acordado com qualquer som de pancada. É claro que não consegui dormir mais naquela noite. Nem meu filho. Depois de fazer os devidos curativos e administrar-lhe um analgésico para a dor, ficamos sentados na sala em silêncio até o dia raiar. Servi-lhe um café e logo ele se ocupou em começar o dia, foi ao banho e seguiu para o trabalho.
Assim que ele saiu tomei uma decisão: iria à igreja para conversar com o padre. E foi o que fiz, apesar de nunca ter conversado com ele fora da breve rotina de confessionário, expliquei-lhe o ocorrido e pedi por conselho em como proceder. Ele ouviu a todo o meu relato com um ar aborrecido de quem tinha mais o que fazer e me dispensou com uma recomendação de rezar um terço. Não me senti ouvida. Não me senti protegida. Algo muito sério estava acontecendo com meu filho e tudo o que eu não precisava era passar carão com um padre que achava que eu estava louca. Voltei para casa bem chateada.
À tarde lembrei-me da Dona Clara, uma velha benzedeira que morava no bairro vizinho e que havia me acudido quando o Hugo era bebê. Liguei para a casa dela para perguntar se ela podia me atender e como a semana estava calma na agenda dela, ela poderia me receber no final da tarde. E assim ela me atendeu, ouvindo com atenção o meu relato.
– “Minha filha, isto é coisa séria mesmo. Ou o seu filho fez alguma coisa muito errada com alguma entidade ou alguém quer fazer mal a ele.” – disse-me ela enquanto colocava uma água para ferver para um café. – “De toda forma, isso só pode ser visto quando a noite finalmente cair. É melhor que você fique por aqui mais um tempo”.
Às seis horas, ouvimos o sino da igreja e ela me convidou a rezar a Ave Maria com ela. Ela me tomou as mãos e juntas rezamos pela intercessão da Virgem Santa. Como o Hugo só voltaria depois da faculdade, senti-me a vontade em esperar a noite cair e finalmente entender do que ela estava falando.
Fui convidada a tomar uma sopa enquanto aguardávamos a hora certa, que finalmente chegou quando ela se levantou e acendeu sobre a pia uma vela branca “para o anjo da guarda”. Ela então me fez um sinal para que a seguisse por um pequeno corredor lateral da casa até o quintal de terra. No fundo do quintal, dentre as muitas plantas que a velha cultivava, havia um pequeno oratório montado com umas estátuas feias de doer, pretejadas pelo tempo e por fuligem de vela.
Dona Clara sentou em um velho toco de madeira e eu fui convidada a fazer o mesmo em outro. Ela acendeu um charuto que trazia no bolso, sacou uma garrafa de pinga que estava atrás do oratório e serviu uma dose à terra. Depois, serviu uma dose em um copo diante daquele “santo” feio e sorveu um grande gole dando um suspiro de gosto ao final. Depois, pôs-se a encher a boca novamente e espirrar com grandes sopros, um pouco em mim e no outro tanto no “santo”. Começou então a fazer uma reza, da qual não entendi muita coisa. Acendeu então um charuto e começou a rezar.
A velha rezou e rezou até que seu corpo se retesou, e com os olhos fechados e uma expressão irreconhecível em seu rosto, quase uma careta de dor, ela me disse num murmúrio –“Seu filho trouxe um presente meu para casa. Por sete luas eu o avisei.” – Entre uma baforada e outra ele continuou muito sério – “Pergunte a ele, se ele não tem sonhado comigo por todo este tempo. Pergunte a ele quem chutou minhas oferendas para impressionar o amigo, dizendo que não acreditava nestas porcarias, fazendo chacota com meu povo. E finalmente pergunte o que ele trouxe para casa. Assim, quando ele devolver o que preciso para ajudar a pessoa que me presenteou aquelas oferendas, eu posso ajudá-lo. Seu filho vive pela sua graça: sob seu teto e sua tutela espiritual, sem ela toda esta carga o partiria em dois. Veja a senhora, a carga que seu filho pegou é minha, e a oferenda é a força que preciso para carregá-la.”
Dona Clara deitou o charuto no oratório, sacudiu-se um pouco como se acordasse de um sonho e me encontrou um pouco agitada com toda aquela conversa estranha. “Você não precisa acreditar em nada.” – disse ela, dando um tapa no joelho e levantando-se com cuidado.
Voltei para casa intrigada, mas não completamente convencida. Como ela não havia me cobrado nada até então, eu também não podia reclamar.
Finalmente o Hugo voltou, e logo que ele chegou fiz um relato do que havia acontecido no dia. A princípio ele estava bem calmo, com um sorriso zombeteiro no rosto, mas quando terminei o relato observei que seu rosto estava branco e seu olhar, fixo. Antes que eu pudesse perguntar qualquer coisa ele correu ao quarto e me trouxe nas mãos um chapéu de feltro, um chapéu novinho e com a aparência de caro. Ele se sentou, segurou o chapéu pelas abas e ficou ali por um tempo abrindo e fechando a boca, como se procurasse as palavras certas para falar. Por fim, virou o chapéu com um floreio e o colocou na cabeça.
Hugo nunca mais foi o mesmo.
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