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Foto do escritorAlfredo Cruz

As preces mágicas que foram escritas em favor de Ahěta Mîkâêl

Em 1900, Sir Ernest Alfred Wallis Budge (1857-1934) fez publicar em Londres uma coletânea ilustrada de textos que havia há pouco terminado de traduzir do etíope clássico (ge’ez), escritos constantes nos manuscritos da coleção de Valeria Susan (1847-1910), mais conhecida como Lady Meux, uma socialite vitoriana que se interessou tanto em adquirir artefatos e textos egípcios e etíopes quanto em corridas de cavalos. Sir Budge foi curador do departamento de antiguidades egípcias e assírias do Museu Britânico de 1894 a 1924, e quando publicou a sua versão inglesa do que se registrava nestas peças já havia dado a público numerosas traduções e comentários de textos religiosos faraônicos, coptas e abissínios. Sabendo que muitos dos papéis que detinha em sua coleção eram venerados pelos etíopes como sagrados, Lady Meux legou-os em seu testamento ao Imperador Menelîk II (r.1889-1913), aos quais, contudo, jamais foram entregues. Talvez por iniciativa do próprio Sir Budge, desejoso de incorporá-los ao acervo do Museu Britânico, os tribunais ingleses anularam essa disposição de Valerie Susan, com a ostensiva intenção de fazê-los permanecer em Londres. Os manuscritos haviam sido retirados da Etiópia depois de serem roubados por soldados britânicos de uma biblioteca monástica durante o cerco de Maqdala, em 1868, mas, depois da morte de Lady Meux, nem permaneceram na Inglaterra, nem retornaram ao seu local de origem, mas acabaram vendidos para o milionário norte-americano William Randolph Hearst (1863-1951).


No volume preparado por Sir Budge, ao lado da tradução de duas listas de anedotas, milagres e orações etíopes associadas à Virgem Maria e uma história de Sant’Ana (Ḥannâ’), mãe de Maria, avó de Jesus, acompanhada de alguns preces dirigidas a ela e sua ilustre filha e neto, encontra-se também uma versão em inglês de um fragmentário pergaminho de proteção e cura redigido em favor de certa cristã de nome ‘Ahěta Mîkâêl. O importante orientalista inglês não datou este texto, mas é verossímil acreditar que ele pode ser situado do meio para o fim do século XVIII, tanto em função de algumas de suas características religiosas e filológicas, como pelo fato de que ele chegou às mãos de Lady Meux junto com outros dois volumes, bem mais extensos, justamente deste período. Do ponto de vista de sua forma, trata-se de uma série de preces escritas em uma longa e estreita tira de pergaminho, que aparentemente se destinava a servir para proteger a referida ‘Ahěta Mîkâêl contra os ataques de maus espíritos e demônios e uma série de doenças atribuídas à ação destes. Acreditava-se na Etiópia pré-moderna – e ainda se acredita em certas partes desse país e de sua diáspora – que o portador deste tipo de documento ou a casa que abrigue estará livre de diversos tipos de ataques e problemas, tanto espirituais quanto materiais. Também que o conhecimento e a pronúncia dos nomes dos anjos, arcanjos e outros seres celestiais nele mencionados fariam cessar ou ficar sem efeito os assédios dos demônios e outros tipos de mau espíritos. Sir Budge observa, não sem algum etnocentrismo, que o documento que traduziu foi mal escrito, talvez apressadamente, e que contém estranhas abreviações e erros de concordância e ortografia. Seu conteúdo, entretanto, é de um inegável interesse para aqueles interessados na história da religião e da magia, principalmente da manipulação das energias dos anjos e dos nomes secretos de Javé, palavras de poder que a tradição etíope chama de asmât.

Frontispício do volume publicado por Sir Budge em 1900.

Na tradição mágico-religiosa abissínia, os ditos pergaminhos de proteção e cura são ferramentas poderosas para combater doenças e manter afastados daqueles que os detêm junto a seus corpos ou em suas casas quaisquer tipos de males, ameaças ou inimigos, visíveis ou invisíveis. Tais objetos eram feitos para serem transportados ou guardados como talismãs, mas também, de acordo com a necessidade, terem seus conteúdos recitados e serem tocados, beijados e incensados por aqueles que os possuíam. Alguns também eram usados como travesseiros ou aspergidos com água benta para tivessem melhor ativadas suas potencialidades. Do ponto de vista formal, são aparentados das bolsas de mandinga e gris-gris produzidos pelos negros mais ou menos islamizados da Costa Ocidental da África e de sua diáspora nas três Américas. Como obras de arte, tratam-se de documentos bastante originais, mas que exibem influências diversas – coptas, helênicas, judaicas, siro-ocidentais, siro-orientais, árabes, persas, sul-indianas, afro-centrais, afro-orientais, berberes, armênias e mesmo latinas -, testemunhando o papel histórico da Abissínia cristã como ponto de encontro entre diferentes culturas e religiões. A maior parte deles se encontra redigido em ge’ez, antes a língua franca do Império Axumita, agora o idioma litúrgico da Igreja Ortodoxa Etíope, mas há também exemplares conhecidos – ainda que muitíssimo menos comuns – que foram escritos em amárico, tigrino, copta, siríaco e árabe.


A Etiópia possui uma população judaica que reivindica ascendência salomônica, uma população cristã que talvez tenha se estabelecido ainda no período da pregação apostólica, e uma população muçulmana que aí se fixou ainda nos tempos de Maomé, antes mesmo da Grande Hégira. Desde o início do século IV até o golpe de Estado que, setembro de 1974, colocou fim ao seu regime político-religioso tradicional, levando à deposição e prisão de seu último imperador, Hailé Selassié (1892-1975), a região era dominada por um governo oficialmente cristão. O cristianismo etíope, contudo, é bastante peculiar não só por ter uma doutrina sobre Cristo diferente daquela que foi considerada ortodoxa pelas Igrejas de Constantinopla e de Roma no Concílio de Calcedônia, celebrado em 451, mas também por manter vivo em seu interior uma série de textos e práticas que, no âmbito do cristianismo mediterrânico, acabaram por ser abandonadas com o passar do tempo. O Livro de Enoque, por exemplo, que possui certa influência sobre os textos do Novo Testamento e é fundamental para entender a formação e expansão do cristianismo em seus primeiros séculos, acabou sendo considerado problemático e herético pelas igrejas mediterrânicas, mas foi continuamente valorizado e, por fim, alcançou estatuto de canônico na Abissínia cristã. A forma de cristianismo aí praticada também conjuga de maneira bastante original significativas influências judaicas e das práticas e crenças religiosas presentes já antes da expansão das religiões abraâmicas nas regiões do Chifre da África, do entorno nilótico e da África Centro-Oriental.


Durante séculos os pergaminhos de proteção e cura têm sido usado pelos etíopes como meio de buscar alguma preservação pessoal e coletiva contra as intempéries ecológicas e político-militares que vez ou outra atingem sua tradicional região de habitação. Sua produção têm sido reiteradamente associada aos dâbtârat (sing. dâbtâra), figura itinerante comum entre os judeus e cristãos autóctones, organizada em coros semi-monásticos, que canta hinos, toca tambores e realiza danças com palmas e saltos no âmbito dos ritos das sinagogas e das igrejas ortodoxas do país. Os dâbtârat reivindicam certa autoridade eclesiástica e normalmente atuam como leitores e acólitos nas liturgias, ainda que nem todos tenham chegado a receber as ordens menores ou a diaconia das mãos de um bispo, ou sequer ter passado algum tempo de instrução formal em uma catedral ou mosteiro; alguns deles, de fato, são monges, diáconos ou presbíteros que em certo momento de suas vidas abandonaram seus postos mais formais. Eles também são bons conhecedores das ervas curativas e venenosas, realizam exorcismos, previsões astrológicas, adivinhações através da observação do padrão das chamas e cera derretida das velas, bênçãos e outros rituais de magia branca para ajudar a população não assistida por clérigos ordenados. Muitos, contudo, são temidos em função de conhecerem as palavras e fórmulas secretas que lhes dariam algum domínio sobre certos anjos, demônios, espíritos das plantas, dos rios, das pedras, das horas do dia e dos mortos, além dos zâr e abdâr, seres respectivamente malévolos e benévolos que são capazes de assumir o corpo dos seres humanos durante certo período e falar e realizar alguns prodígios dessa forma. Aos dâbtârat normalmente está associada a oração-anedota conhecida como Rede de Salomão, usada com frequência para combater o mau-olhado (aynât), e que narra como este antigo Rei de Israel e pai espiritual da Etiópia teria forçado o chefe dos ferreiros do Inferno a lhe revelar seus feitiços malignos e lhe servir humilde e docilmente durante certo período de tempo. A escrita ou recitação desta prece de poder normalmente se vincula ao desenho, desvelamento, incensação e/ou aspersão com água benta de uma estrela de oito pontas, que se diz que é usada para aprisionar e submeter diferentes tipos de forças espirituais.


A maior parte dos dâbtârat vive como esmoleiro ou da redação de pergaminhos de proteção e cura, mas alguns também trabalham como artesãos, pedreiros, pastores ou pescadores. Alguns se especializam em construir espantalhos e cercas de madeira para proteger as plantações de animais incômodos; muitos são também barbeiros e cirurgiões; e alguns poucos trabalhavam como professores nas escolas paroquiais e como escribas nos tribunais civis e eclesiásticos. Antes do golpe de 1974, era relativamente comum que os nobres contratassem dâbtârat para ajudar na educação de seus filhos. É considerada evidência de que um deles é realmente competente em sua função caso tenha memorizado todo o Saltério e saiba de cor quais dos Salmos utilizar para acompanhar cada ocasião litúrgica e atender às necessidades espirituais e materiais de quem lhe procurar em busca de ajuda. Muitos destes homens – pois se trata de função quase que exclusivamente masculina – mantinham livros de preces e receitas mágicas, documentos interessantíssimos, mas infelizmente quase impossíveis de decodificar pelos estudiosos, pois destinados a um entendimento e uso estritamente pessoal.

Fisseha Gebrekidane, um velho dâbtâra, conclui a redação de um pergaminho de proteção e cura. Província de Tigré, Etiópia, 1997.

A preparação dos pergaminhos de proteção e cura é tão importante quanto a sua posse e eventual receitação e/ou uso mais ativo. Esses rolos são feitos de peles animais, normalmente cabras ou ovelhas, que são especialmente adquiridas, preparadas e sacrificadas para este uso. Antes do abate do animal, ele é alimentado com o que há de melhor disponível e são entoadas uma série de orações sobre sua cabeça, pedindo que ele substitua o aflito para quem se redigirá o pergaminho. Enquanto sua pele é secada e preparada para a escrita, ela é repetidas vezes esfregada na pele daquele que o encomendou, enquanto se recitam orações que pedem que essa se torne uma sua cobertura e armadura espiritual. A pessoa a ser favorecida também deverá passar por uma espécie de simulacro de batismo no sangue do animal, um ritual no qual recebe um nome novo e secreto, que a vincula a um santo ou anjo tanto quanto ao espírito do bicho sacrificado, e que serve para protegê-lo de ataques espirituais e da ação de entes invisíveis malignos ou simplesmente maliciosos. O ideal é que um desses objetos seja feito na mesma altura do indivíduo que por ele se pretende beneficiado, embora ele possa eventualmente ser bem mais comprido do que este. Nas áreas em que o vernáculo é o tigrino, um pergaminho do tamanho de uma pessoa é normalmente chamado de cobertura total (ma’ero qumât) ou apenas de talismã (tâlsâm). Nas regiões de língua amárica, são chamados de escritos na pele (yâ branna ketâb).


Devido ao seu material e uso, muitos dos pergaminhos só se mantiveram até os nossos dias de forma fragmentária, sendo anteriormente parte de peças bem maiores. As notícias mais antigas a seu respeito são do século XIII, mas eles são visivelmente aparentados de práticas e objetos muito anteriores, que remontam à literalmente milhares de anos atrás, verificados na África Centro-Oriental, na Arábia e no entorno do Oceano Índico e do Mar Mediterrâneo ainda em nossos dias. O imperador Zar’â Yâʿiqôb (r.1434-1468), importante reformador político-eclesiástico da história etíope e ele mesmo um teólogo de certa relevância, estabeleceu duras medidas repressivas contra a atividade dos dâbtârat e fez com que um número incalculável de pergaminhos de proteção e cura fossem destruídos como objetos de feitiçaria nos dias de seu governo. Em outros períodos, as autoridades políticas e eclesiásticas normalmente foram muito mais tolerantes em relação a este tipo de objeto, principalmente por eles incorporarem textos e símbolos cristãos de forma bastante ostensiva. Os mais antigos rolos preservados até os nossos dias são de fim do século XVI e início do século XVII, pois, especialmente se foram utilizados de acordo com sua finalidade original, possivelmente não sobreviveram por muito tempo em função de seu material frágil. Há registro de que havia vários milhares de objetos destes em circulação na Etiópia entre o meado do século XIX e o meado do século XX, muitos dos quais acabaram encontrando caminho até coleções euro-americanas de diversas naturezas. Depois do golpe de 1974, os pergaminhos de proteção e cura tornaram-se extremamente raros, mas ainda são eventualmente produzidos e utilizados. Existe o costume de que, tendo o rolo cumprido a sua finalidade primeira, ele seja sepultado como se fosse uma pessoa na última noite antes de fazer um, três ou sete anos desde sua confecção.


Os textos registrados nos pergaminhos de proteção e cura não são apenas reação aos problemas concretos que se quer combater ou evitar, mas também escolhidos com base em meio astrológicos, como o alinhamento numérico de um nome com uma determinada constelação, ou através da ciromancia ou piromancia. Muitas vezes os nomes das Pessoas da Santíssima Trindade, da Virgem Maria, dos santos e dos anjos consignados nestes documentos são escritos com tinta especial, feita a partir da mistura de diversas plantas consideradas ritualmente poderosas e/ou com o sangue do animal cuja pele serve de base à escrita. Tais manuscritos também são adornados com uma grande variedade de ilustrações, criados tanto para a edificação espiritual como para a proteção direta contra danos espirituais ou materiais. Entre estas se inclui grande número de representações de maus espíritos e demônios, que se pretendia tornar visíveis e, assim, vulneráveis e passíveis de identificação e esconjuro. São muito populares as representações de anjos e arcanjos, principalmente os Arcanjos Miguel e Fanuel, e dos santos militares do Oriente Cristão: Jorge da Capadócia, Socínio (Sûsenyûs), Demétrio de Tessalônica, Teodoro de Heracleia, Mercúrio de Cesareia, Caleb (também dito Elesbão), Acácio de Bizâncio, Adriano de Nicomedia, Artêmio (também dito Chalita), Eustáquio de Roma, Marcelo de Tânger, Maurício, Menas, Vítor, Sérgio e Baco. Nem todas as entidades representadas, benignas ou malignas, são humanóides, e algumas são referidas simplesmente através de padrões geométricos muito elaborados e coloridos. Vários dos pergaminhos também apresentam desenhos de sóis, de raios de luz, de chamas, de pentagramas e hexagramas de bordas flamejantes e de cruzes luminosas, símbolos que representam nesta forma de escrita mágico-religiosa o poder de Jesus Cristo como exorcista e vencedor do mal e da morte. Há também registro de elaboradas imitações de letras árabes, aramaicas, armênias e gregas. Acredita-se que o conteúdo de um pergaminho de proteção e cura é visto pelos demônios e maus espíritos através dos olhos de suas vítimas humanas, então as ilustrações que eles contêm também são preparadas, de alguma forma, para atingi-los.

Vista panorâmica de pergaminho de proteção e cura, produzido no fim do século XVIII ou início do século XIX na Província de Tigré, Etiópia.


Segue tradução em português das nove preces mágicas que foram escritas em favor de ‘Ahěta Mîkâêl no pergaminho de proteção e cura adquirido por Lady Meux e traduzidas ao inglês e publicadas por Sir Budge em Londres em 1900:


1. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Deus Único. <Amém.> Uma prece para manter os demônios sob controle. Ó, Wakîr, Kîryâk, Awkyâyaêl, Agâzetyânôs zaîya’arb <i.e. do amanhecer, lit. amanhecedor>, Ḍaḥâya waîyas’ěr něg <i.e. do anoitecer, lit. anoitecedor>, Berhânâêl, ‘Ukûêl, Fěnûêl, Akâkyâêl, Ibônâêl, Kětêl, Aḳe’êl, Aḳtenânôs, Amîs, Êwěshâêl, Târôs, Êwěshâêli, A’ětyânôs, Saryâêl, Fělnâtâ, Yûlnâtâ, Parânyûs, Êrnîwâs, Êtḥayayû, Ṭěrlêl, Awkěyûs, Sarânyûs, A’awânăs, Asîmâs, Agalyûs, Lôs e Ḍanûs. Estes são os Gloriosos Nomes que <deves recordar e recitar> diante e nos limiares caso queira ingressares em uma casa que é antiga, ou que está em ruínas, ou impura. <Ao que se sabe> nenhum demônio aproximar-se-á de ti <por causa deles>. Não serás atingidos pelas flechas ou dardos dos teus adversários, nem pelas pedras ou pelas lanças que por desgraça eles venha contra ti arremessar; pois os anjos te protegerão e te manterão em segurança sob suas asas por causa destes nomes altíssimos, que são nomes do Senhor, teu Deus. Ó Senhor Jesus Cristo, Redentor nosso, protege e liberta tua serva, ‘Ahěta Mîkâêl, de Bôryâ e dos demônios; salva-lhe e cura-lhe <caso ela seja afligida> da tosse, da pneumonia, da pleurisia, da febre <ou da inflamação dos intestinos?>, da diarreia, da dor no estômago e das cólicas. <Que assim seja. Amém>.


2. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Deus Único. <Amém.> Uma prece contra o mau-olhado <na/da> latrina e contra todos os males causados desta forma. Enquanto viajava nosso Senhor, Jesus Cristo, pelo país de Ṭěběr-yâdas <Tiberíades?>, e iam com Ele os Seus Discípulos, viram a sombra de uma velha sentada no chão, de costas contra o caminho. Esta mulher causava inúmeros problemas e era terrível <em sua aparência>. Caso um homem dela se aproximasse, fazia-se extremamente prejudicial a ele. Seus olhos disparavam relâmpagos, seus pés eram como uma roda de fogo, e saíam de sua boca altas labaredas que chegavam a nove côvados de comprimento. E os discípulos de nosso Senhor, Jesus Cristo, aqueles que o seguiam pelos caminhos, disseram-Lhe: “Mestre, quê se passa com essa mulher maldita? Sabe-se que se ela olha para um barco no qual um homem atravessa um rio ou um braço de mar, este desvia-se de seu caminho e acaba por virar. Que se ela olha para um cavalo ou camelo, faz com que o animal e aquele que o monta caiam tão logo se ponham a caminho. Que se ela vê um leproso tomando leite, não afasta dele o seu seio. Que se ela vê um homem que tenha filhos afligidos pelo mau-olhado ou por más obras de quaisquer espécie, multiplica a maldição deles, destruindo-os com maldosa alegria, fazendo com que encontrem o seu fim.” Ora, tendo nosso Senhor e Redentor, Jesus Cristo, ouvido tais coisas, disse Ele a Seus Discípulos: “Ide e tomai consigo esta mulher que a todos fere com seu olhar maligno. Façam uma fogueira, levem-na até o fogo, ponham-na em suas labaredas e garantam que queime inteiramente. Ao vento leste, ao vento oeste, ao vento sul e ao vento norte espalharão o seu pó.” Amém. Que a memória de Seu Santo Nome, Senhor e Redentor nosso, Jesus Cristo, remova todo o sofrimento causado pelo mau-olhado, pelas maldições, por Bôryâ, pelas feitiçarias, pelas bronquites, pela pleurisia, pela inflamação dos pulmões e por quaisquer males similares, apartando tudo isso de tua serva, ‘Ahěta Mîkâêl. <Que assim seja. Amém>.


3. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Deus Único. <Amém.> Uma prece <ao Arcanjo Fânûêl> contra a pleurisia e a bronquite, contra o mau-olhado lançado por um homem agressivo, e contra o mau-olhado e a feitiçaria de Bôryâ. Saudação a ti, ó bendito Fânûêl, aquele que fustigas e expulsas os demônios, por cujo clamor Deus, nosso Senhor, não irá permitir que aqueles homens que se arrependem de seus pecados sofram a punição por eles mais devida. Saudação a ti, ó bendito Fânûêl, que vences e humilhas os demônios! Pelo poder de nosso exaltado Criador e Senhor, o Deus Altíssimo, os homens tiveram o devido conhecimento a respeito do discurso da destruição; pois Tu, ó nosso Senhor, és um Deus Misericordioso. Saudação a ti, ó bendito Fânûêl! A ti peço, altíssimo cavalheiro, que de mim afaste os demônios que me oprimem. Guarda-me e auxilie-me, eu te rogo, pois tenho não mais do que a miserável constituição de um homem. Ó, bendito Fânûêl, protege-me e ajude-me! Saudação a ti, ó bendito Fânûêl! Opere sobre mim um milagre, cobrindo-me de benevolências! Não permita que aquele que trabalha os metais no fogo do Inferno trabalhe contra mim, penetrando em minha habitação e perfurando minha caverna através de suas artes negras. Ó, Senhor, eu te imploro, desembainhe Tua Espada de Fogo contra meu inimigo, o diabólico Mastêmâ, e fere com a doença aquele que tantos problemas tem me causado! Sim, ó, Fânûêl Malakôfîmî, fere de morte esse maldito agitador! Ó, altíssimo Fânûêl Petrôs, sacerdote em seu interior e em seu exterior, que oficias dentro e fora do santuário, no infeliz dia em que eu incorrer em qualquer pecado, defenda-me de tal forma que eu me veja absolvido e liberto diante do Juízo de Deus. E livra da tosse, da pleurisia, da bronquite e da pneumonia tua serva, ‘Ahěta Mîkâêl. <Que assim seja. Amém>.


4. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Deus Único. <Amém.> Uma prece que o Profeta Jeremias escreveu a respeito da Cruz quando teve suas mãos e pés amarrados e foi lançado a uma cova de sete palmos de profundidade. A Cruz é nossa força. A Cruz é nosso sol. A Cruz é nossa redenção. A Cruz é a salvação de nossas almas e de nossos corpos. A Cruz é nossa espada. A Cruz é nosso auxílio. A Cruz é a senhora que submete nossos inimigos. A Cruz é a esperança mesmo dos judeus que negaram e continuar a negar aqueles que acreditam no poder da mesma Cruz… <duas linhas ilegíveis>… mîk-balên den sadôr ‘aldôr dântet ‘adîrâ ‘Arôdyâs, Mâsyâs, ‘Azyâyas, Yârôs. Amém. Pelo poder da Santa Cruz, minha alma é liberta e meu corpo é selado. Pelo poder da Santa Cruz, eu ressuscitarei e serei absolvido no Dia do Juízo. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Deus Único, sou liberto e selado pelo sinal da Santa Cruz, pela marca do Lenho ferido com os Cinco Cravos que foram para o Calvário carregados por Bě’êl <Baal?>. Ó, Cruz santa e bendita de nosso Senhor, Jesus Cristo, através do qual foram repreendidos, vencidos e humilhados os malditos Bě’êl e Bôryâ e dispersos os negros demônios que antes se encontravam sob seus comandos, faz com que seja aniquilada a memória do nome do infeliz Ḍalwâgi e liberta de seu nefasto poder a tua tua serva, ‘Ahěta Mîkâêl. <Que assim seja. Amém>.


5. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Deus Único. <Amém.> Uma prece contra as dores causadas pelas feridas. Ó, Mědměyâs, Mědmědyâsi, Mêdmêdyâsili, Mědměyâz, Mědmědyâzi, Mêdmêdyâzili, Yahâḳî, Yahâḳîs, Yahâḳîsi, Yahâḳîsil, Yahâḳîsili, Yahâḳîsilîz: libertais tua serva, Walda Karrâsḳî, das dores causadas pelas feridas, e livrais e curais igualmente tua outra serva, ‘Ahěta Mîkâêl. <Que assim seja. Amém>.


6. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Deus Único. <Amém.> Uma prece contra o temível Matěm. Ó grande vencedor de demônios, assim como tu destruíste os exércitos dos demônios; ó, Lonyûn, Sîwâwěyûn, Ḳahâfmelyûn, Nemleyûs, Lafhôm, Salomão, Râbî, Kîryâk, Xabrâḳ, Sadraque, Mesaque e Abednego; pelo poder dos Teus Santos Nomes, pelos quais agrilhoaste a Bôryâ e a todos os negros demônios sob seu comando; da mesma forma vinde e acorrente o maldito Matěm, para que ele não possa se aproximar da alma ou do corpo de tua serva, ‘Ahěta Mîkâêl. Em nome de Sarôs, em nome de Sarôsî, em nome de Sakartyânâs, e em nome de Xamyâ, que são aqueles que afastam os maus espíritos e os demônios sob o comando de Satanás; pelo poder e autoridade de Xâmî, de Xakânâ, de Xanan e de… <três nomes ilegíveis> que aterrorizam o negro Bôryâ e todos os demônios sob o comando de Satanás… <uma linha ilegível> por meio e poder destes nomes gloriosos, eu invoco e conjuro <a Deus?> para que humilhe e prostre, detenha e proíba, e reduza a nada a ameaça de Bôryâ, de Masrayâ e de Ḍalwâgî, mantendo-os longe da alma e do corpo de tua serva, ‘Ahěta Mîkâêl, que deles se verá livre. <Que assim seja. Amém>.

Imagem: Representação de São Socínio (Sûsenyûs) vencendo o demônio de nome Úrsula (Wěrzěwělěyâ), constante em pergaminho de proteção e cura comprado por James Theodore Bente (1852-1897) a uma monja etíope, na cidade de Axum, em 1893.


7. Em nome de Deus, o Vivente, que concede <aos homens> o poder da palavra. Uma prece <pela intercessão> de São Sûsenyûs <Socínio>, rogando que ele remova todo tipo de doenças daqueles que ainda sugam o leite do seio de suas mães. Esta oração é de grande vantagem para toda mulher que tem filhos para amamentar e criar, e deve ser escrito em seu favor e por ela usado com a ajuda de Deus, o Glorioso, o Altíssimo, até que terminem os dias da infância daqueles que gerou. Ó, Senhor nosso, preserve e proteja os pequenos de todas as doenças causadas pelo mau-olhado e feitiçarias de Bôryâ, da tosse e da bronquite, do pleurisia e da pneumonia, dos catarros e da gastroenterite, da diarreia e dos vômitos, das cólicas e da disenteria, das fístulas e das doenças causadas por vermes, das rachaduras e feridas na pele, das picadas de insetos e dos venenos das cobras, do mau-olhado e feitiços dos zâr, dos bruxedos e dos encantamentos, do mau-olhado de Ḳûmanna <Inanna?> e de Ḍalâwâgî, do mau-olhado de Gâlâ, do mau-olhado de Xaḳlâ, do mal olhado de ‘Eslâm e de ‘Amhârâ, do mau-olhado de Tabôt e de ‘Ans, do mau-olhado de Maḳâwězî Fěrḳěḳât e de Sashasaḳât Těkûsât… <uma linha ilegível>. De tudo isso, liberta, ó Senhor, também a tua serva, ‘Ahěta Mîkâêl. Havia há muito tempo certo homem cujo nome era Sûsenyûs <Socínio>, que se casou com uma bela donzela e gerou um belo filho. Ainda nos primeiros dias deste menino, entretanto, veio Wěrzěwělěyâ <Úrsula>, matou-o e foi-se embora, enquanto sua mãe chorava e gritava de dor pelo que lhe aconteceu. Quando o sagrado Sûsenyûs ouviu o choro de sua esposa e soube o que havia ocorrido a seu filho, tomou uma lança na mão direita, montou em seu cavalo, Querubim, e foi buscar a causadora desse mal. Então ele encontrou uma velha de aparência temível sentada debaixo de uma árvore e se dirigiu a ela, fazendo-lhe muitas perguntas. Assegurando-se de que era ela aquela a quem procurava, desceu de seu cavalo, Querubim, voltou seu rosto para o Oriente, ajoelhou-se, ergueu suas mãos e orou em alta voz, dizendo: “Ó, meu Senhor e Salvador, Jesus Cristo! Ó, Deus dos cristãos! Ó, Senhor Altíssimo, Rei dos Reis, Senhor dos Senhores! Permita-me que faça justiça e mate neste dia a maldita Wěrzěwělěyâ… <menos de uma linha ilegível> golpeando-a no lado direito de seu peito para que ela não mais venha a ferir e matar as crianças que ainda sugam o leite do seio de suas mães e para que não faça mais qualquer tipo de mal àquelas que as geraram e aos maridos destas. Eu juro e proclamo que, sendo-me isso concedido, tornar-me-ei um mártir por amor a Teu Nome, eu, o bendito Sûsenyûs.” E enquanto continuava a orar desta forma diante do Deus que tudo ouve e tudo vê, veio-lhe uma voz do alto do Céu, que disse: “Eis que te será dado por Deus o poder para matá-la e realizar entre os viventes a Sua Justiça.” Então ele se ergueu de um pulo e dirigiu-se à velha que encontrou sentada embaixo de uma árvore <mas ela agora estava diferente em sua aparência>. E perguntou-lhe: “Para onde foi Wěrzěwělěyâ, saindo de junto de ti?” E a mulher disse-lhe: “Ela entrou no bosque que está bem diante de teus olhos, cavalheiro.” Quando o santo Sûsenyûs ouviu <tais coisas>, alegrou-se, tornou a pegar a lança em sua mão direita e a montar em seu cavalo, Querubim. Ele ingressou no bosque cavalgando, foi até a demoníaca Wěrzěwělěyâ e a matou golpeando-a no lado direito de seu peito. E a maldita Wěrzěwělěyâ disse em sua agonia: “Ó, Senhor Jesus Cristo, eu juro por Ti, pelas sete hierarquias dos Arcanjos, por Miguel e Gabriel, pelos Serafins e pelos Querubins, por Uriel e Rafael, por Fânûêl e Saḳêl, por Sadakôêl e ‘Ḯktenâêl, por estes que estão diante do Trono do Criador e Provedor de todo o mundo, o Deus de Ananias, Azarias e Misael, que eu não mais disputarei contra aqueles que sobre si invocarem Teu Santo Nome; que nunca viajarei ao longo dos caminhos pelos quais Ele seja dito e bendito; que nunca entrarei em qualquer igreja ou casa onde Ele seja lembrado e celebrado; e que jamais tocarei em qualquer um sobre o qual seja colocada esta prece, seja criança, seja jovem, seja adulto, desde agora até o fim do mundo, pelos séculos dos séculos. Amém.” Ó, Senhor nosso, livra das dores e das doenças causadas pelo mau-olhado de Bôryâ, da tosse e da bronquite, da pleurisia e da pneumonia, dos catarros e da gastroenterite, da diarreia e dos vômitos, das cólicas e da disenteria, das fístulas e das doenças causadas por vermes, das rachaduras e feridas na pele, dos bruxedos e dos encantamentos, dos feitiços de Ḳûmanna e Ḍalâwâgî, do mau-olhado de Xaḳlâ, do mal olhado de ‘Eslâm e de ‘Amhârâ, a tua tua serva, ‘Ahěta Mîkâêl. <Que assim seja. Amém>.


8. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Deus Único. <Amém.> Uma prece simples. Ó, Masṭěma, Markebyûn, Maḥafrěkîn, Fêfran, Magôma-‘esât, Dělfělêl, Zardâêl, Gashâḍâêl, Mendânâêl, Afṭětatâ-mawa’î-ḍara, Êlêlê, Ṣarâêl, Ṣarâêli, Ṣarâêlîs, Hênâêl, Hênâêli, Kesbăêl, Êlêf, Baḥîl, Běrhânâêl, Salâtâêl, Azyâs, Masayâ, Abnâdî, Gâmîêl, Běhîl, Fělfêl, Ḥûrḳûryûn, Mahâbîl e Kîftâhî: subjugai os demônios, acorrentai-os com fortes correntes, e libertai tua serva, ‘Ahěta Mîkâêl, dos feitiços e mau-olhado de Ṣalâwâgî, de Zâr… <duas linhas ilegíveis>. <Que assim seja. Amém>.


9. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Deus Único. <Amém.> Uma prece pelo sangue. Ó, Santam, Wântam, Ḳarnawû, Lîsa, Lḁsîsa, Alfěyûs e Malzazîn: assim como vós recolheis em vossas mãos o poder do granizo e dos ventos da tempestade, da mesma forma coletais, fortaleçais e edificais o sangue de vossa serva, ‘Ahěta Mîkâêl. Conta a Palavra que uma mulher estéril deu à luz sete filhos por Teu Temor, ó Senhor, nosso Deus; fazei, portanto, por força destes Santos Nomes, que esta tua serva, ‘Ahěta Mîkâêl, gere forte descendência. Ó, Delxatâ, Tîtixar e Xarêxîren: assim como vós recolheis em tuas mãos o poder do granizo e dos ventos da tempestade, da mesma forma coletais, fortaleçais e estabeleçais a semente do homem no ventre de vossa serva, ‘Ahěta Mîkâêl. Ó, Énlît, Madjîr, Madjîri, Madjîrilin, Diḳôrôn, Bazyâs e Bětâêl: pelo poder desses Teus Nomes, não volteis a matar a criança que traz no ventre tua serva, ‘Ahěta Mîkâêl… <Segue uma pequena e pouco legível conclusão, na qual se faz uma petição adicional para que Deus, “a quem nada é impossível”, destrua inteiramente a Bôryâ e os demônios e maus espíritos que o acompanham, entidades que causam ameaçam ‘Ahěta Mîkâêl com febre, pleurisia, tosse, catarros, vômitos, pneumonia, reumatismo, diarreia e cólera. A oração se conclui aparentemente como as demais>.

Imagem: Representação de Arcanjo constante em pergaminho de proteção e cura, datado possivelmente dos anos iniciais do século XIX, produzido e comprado na Província de Tigré, Etiópia.


PS. Para quem, ao ler o presente ensaio com a tradução das preces mágicas que foram escritas em favor de ‘Ahěta Mîkâêl, ficou com vontade de saber mais sobre a história, a cultura e a religiosidade etíopes, convido a dar uma olhada em https://tinyurl.com/6ekmpbfr, curso no qual apresento algumas de minhas ideias a respeito, movendo-me dentro de um dos temas que mais tem me interessado nos últimos anos.

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