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Alguns encantamentos da Quaresma

Em memória de Glória Edite Bronzato (†2007) e Anete Bronzato (†2020)


Nasci e passei boa parte da minha vida em Valença, uma cidade do interior do Estado do Rio de Janeiro, onde voltei a morar novamente faz cinco anos. Ela está próxima da fronteira com o Estado de Minas Gerais, e em muitos sentidos penso que é mais próxima deste. Temos aqui quatro cemitérios. Dois ficam localizados na zona rural, onde mora a maior parte da população. Um deles, muito antigo, está localizado em uma propriedade particular e desativado há tempos. Dos cemitérios urbanos, um é bastante antigo, quase no centro da cidade. Este possui algumas sepulturas e mausoléus muito bonitos, que abrigam em seu interior os ossos e o pó da antiga aristocracia que prosperou na região expulsando os indígenas de suas terras e explorando impiedosamente o trabalho na lavoura cafeeira de negros escravizados e libertos e de imigrantes brancos pobres do sul da Europa. O outro, muito mais recente, pertence à prefeitura da cidade desde sua fundação e é um cemitério quase que só de mortos pobres; enterrados quase todos diretamente na terra, reunidos ao redor de uma curta alameda de árvores tristes e de uma pobre e empoeirada capela na qual, ao lado do altar, encontram-se os arquivos que guardam os nomes dos que ali estão. Diz-se que este segundo cemitério marcava há mais ou menos um século ou século e meio atrás o limite da cidade, além do quê se encontravam, até as margens do povoado de São José de Taboas, apenas raras palhoças de negros fugidos ou esconderijos de índios bravos, entre os quais talvez os últimos antropófagos subsistentes na Serra Fluminense.


Do portão de tal campo-santo, vê-se ainda uma grande e velha casa, agora algo desconjuntada, dividida em não menos do que quatro propriedades menores, cada uma reformada e ampliada em um estilo diverso, ao capricho das disputas dos herdeiros e minúcias dos inventários. O antigo casarão é de construção não mais recente do que a Primeira Guerra Mundial, e contava-se ser, antes de sua divisão e da destruição de seu sinistro pomar, um dos lugares mais assombrados de uma cidade repleta de lugares assombrados. Havia ali uma velha mangueira que há muito não produzia fruto, mas que ainda lançava densa sombra sobre a rua; e os que passavam sob ela – eu mesmo o experimentei – cobriam-se de calafrios a qualquer hora do dia, não importando a temperatura circundante. Uma falecida prima de minha mãe, que ali supostamente trabalhou quando jovem, contava, sempre olhando por cima dos ombros e assustada, como se sentindo cheiro de enxofre, que presenciou pessoal e diversas vezes a confusão que faziam nesta casa inúmeros espíritos sem descanso durante a Quaresma. Essa parenta, falecida ela mesmo cedo demais, dizia que esses eram mortos inquietos e maus, que jogavam móveis, quadros, louças, paus e pedras contra os moradores do casarão e transeuntes com a finalidade de machucá-los, tendo uma especial predileção contra os que se dirigiam para funerais no cemitério próximo ou os que cumpriam o turno da noite em uma fábrica têxtil distante não mais do que alguns passos mais. Contava que eles incendiavam as coisas no meio do dia ou da noite, aleatoriamente. Que quebravam vidros, copos e pratos com grande estardalhaço, impedindo-se que ali se dormisse com tranquilidade a qualquer tempo. Que arranhavam continuamente os pisos de madeira e as paredes, deixando neles visíveis marcas de unhas pontiagudas. Que davam murros ruidosos no solo, na laje e no telhado. Que faziam sair sangue de todas as torneiras e entupiam de gordura e cabelos todos os ralos. Que viravam crucifixos e quadros bentos de ponta-cabeça e jogavam longe todos as imagens sagradas levadas ao interior da casa.


As origens de tamanha atividade, a finada informante nunca esclareceu à minha curiosidade de criança e adolescente impressionado. Insinuou ter sido este o local de um cemitério de crianças não-batizadas; um matadouro de porcos; o local do suicídio daquele que durante muito tempo foi o único judeu da cidade; o palco de uma missa satânica celebrada por demanda de um dos barões do café nos anos de 1880, pouco antes da Abolição… Pode ser que tenha sido tudo ou nada disto, vai-se lá saber. Depois da divisão do casarão, da reforma de suas partes, da destruição do pomar, do corte da vetusta mangueira que estava diante da rua, do falecimento desta parenta, da chegada ao lugar de novos e talvez mais descrentes moradores, as histórias foram diminuindo, rareando, até sumirem. Nunca esqueci, contudo, a ênfase que a prima de minha mãe dava em um detalhe particular: tais coisas aconteciam na Quaresma. Aliás, muitos outros causos que ouvi na minha infância e adolescência tinham este mesmo enquadramento cronológico. Afirmava-se com veemência que os dias entre o amanhecer da Quarta-Feira de Cinzas e o anoitecer do Sábado de Aleluia eram dias perigosos, pois então os mortos tinham livre ação no mundo e o Diabo podia a seu bel prazer tentar, mesmo agredir, qualquer um dos seres humanos. Uma série de cuidados especiais haviam de ser tomados para se garantir a integridade física e espiritual das pessoas em tal período, cuidados que iam muitas vezes muito além daquilo que os padres diziam que era a austeridade e penitência esperadas para este intervalo de tempo particular. Leituras posteriores acabaram me evidenciando que não se tratava de um fenômeno local, de uma simples idiossincrasia ligada às estórias que vieram fecundar as minhas memórias, mas de firme rede de crenças inter-relacionadas presente em todo o Mediterrâneo e América católica. Também, aliás, em suas franjas e porosas margens, pois ainda nestes dias confidenciou-me uma amiga que só ficam abertas em Valença durante a Quaresma as casas-de-santo que lidam com energias muito negativas, ou aquelas que estão de prontidão para neutralizá-las tanto quanto possível – e que é extremamente difícil diferenciar umas das outras. Ainda que os trabalhos de amarração e de vingança, principalmente os que envolvem ofertas de sangue e terra de cemitério, são especialmente potentes durante este período.

Entrada do Cemitério Castanheiro. Valença, RJ, novembro de 2020.

A Quaresma é uma observância religiosa solene do calendário litúrgico das Igrejas originárias no primeiro milênio da Era Cristã, que começa na Quarta-Feira de Cinzas e oficialmente termina ao anoitecer da Quinta-Feira Santa, quando se celebra o início do drama da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo. A tradição popular, contudo, tende a anexar na Quaresma a Quinta e, principalmente, a Sexta-Feira Santa. O propósito oficial da Quaresma é a preparação dos fiéis para a comemoração da Páscoa através da oração, da penitência e da esmola. Seus modelos ou figuras bíblicas são os quarenta anos que os hebreus passaram perdidos no deserto, sob a liderança de Moisés e Aarão, entre a saída do Egito e a entrada na Terra Prometida; os quarenta dias de duração do grande dilúvio de Noé; o prazo de quarenta dias que Jonas deu para que Nínive se arrependesse antes de que Deus a destruísse por seus muitos pecados; e os quarenta dias que Jesus passou no deserto jejuando e sendo tentado pelo Diabo antes de iniciar sua vida pública. Muitos cristãos se comprometem a jejuar, bem como a renunciar a certos prazeres, na Quaresma para reproduzir em suas vidas a experiência de seu Messias no deserto; outros incrementam sua disciplina espiritual por meio de leituras devocionais, pela participação em procissões devotas ou pela oração, semanal ou diária, do rosário, do terço ou da Via Sacra, que rememora os estágios da Paixão de Cristo. A Igreja Católica oficialmente prescreve a seus fiéis que se abstenham de carne vermelha e de comidas feitas de sangue neste período, e que realizem jejum completo às quartas e sextas-feiras. O mais comum é que a carne bovina ou suína seja substituída por frango, peixe, massas ou ovos, e que as refeições sejam reduzidas ou adiadas, por exemplo, até depois do pôr-do-sol. As celebrações de casamento, assim como as relações sexuais de um modo geral, são regularmente desencorajadas pelas autoridades eclesiásticas.


Muitas paróquias removem as flores e ornamentos mais chamativos de seus altares durante a Quaresma, enquanto crucifixos, ícones e esculturas religiosas são cobertos com tecidos roxos ou negros. Em comunidades muito pobres, em que não se pode pagar por tecidos vistosos, apenas os rostos das imagens são cobertas; ou elas são retiradas de seus nichos e ocultadas; ou, sendo demasiado pesadas para o transporte, viradas para a parede – coisa que também se faz em alguns oratórios particulares. Durante a celebração quaresmal da missa, omite-se o Gloria in excelsis Deo e o Aleluia, a não ser em um pequeno número de solenidades muito especiais que eventualmente acabam ficando situadas, por causa de seu caráter móvel, justamente em seu interior. Também é costume antigo que neste período não se use qualquer tipo de acompanhamento de instrumentos aos cânticos litúrgicos. Em muitos lugares, os sinos e campainhas, calados, são substituídos pelo lúgubre som das matracas. Na Igreja antiga, quando era mais comum a admissão ao Batismo de pessoas maduras do que de crianças, eram durante as semanas da Quaresma que os catecúmenos eram apresentados aos demais crentes, catequizados e exorcizados. Na Idade Média, os cavaleiros estavam proibidos, sob pena de excomunhão, de realizar neste intervalo torneios entre si ou incursões militares contra outros cristãos.

Em muitos lugares do mundo culturalmente herdeiro da Cristandade, conhece-se o sentimento de que a Quaresma é tempo de algum modo perigoso, denso, aberto a más influências. Em minha infância e adolescência, muitas vezes ouvi que durante este tempo aumentava o número de pessoas que enlouqueciam e que se suicidavam porque o Mal então podia andar solto pelo mundo. Com Cristo retido no deserto, sob a direta influência do Demônio, o cosmos repentinamente parecia sem comando, o que propiciaria um aumento da força daqueles entes que querem mal aos seres humanos. Então se falava de duendes que surgiam das sombras das pedras para morder as panturrilhas e calcanhares daqueles que caminhavam pouco antes do amanhecer. De lobisomens que uivavam nas estradas, matando bois e homens para satisfazer a sua infinita fome de carne e sede de sangue; criaturas vorazes que eram eles mesmos o maldito produto do sexo desfrutado nos dias de abstinência prescritos pela Igreja. De luzes misteriosas que cortavam os céus, aprisionavam as pessoas solitárias e podiam deixá-las loucas em um piscar de olhos. De buracos que se abriam sem explicação e conduziam a salões tão encantadores quanto terríveis. De cães e cavalos negros que corriam pelos ermos atrás dos desavisados, soltando fogo e fumo pelas ventas, fazendo ruídos de congelar o coração dos mais destemidos. De garotas de pele da cor da lua cheia, que ninguém tinha jamais visto antes pelas redondezas, que azedavam o leite por onde passavam, faziam as crianças terem pesadelos, os animais se agitarem e os trabalhadores suarem frio; e que se esgueiravam para dentro dos túmulos durante os dias. De diabretes que surgiam em forma de belos homens ou belas mulheres e que, escondendo habilmente seus cascos, rabos pontiagudos e cornos, convidavam jovens imprudentes e mocinhas sonhadoras a saírem de suas casas para levá-los ao Inferno. Do próprio Demônio, feito enorme galo vermelho ou bode negro sobre duas patas, a bufar e escoicear pelas ruas das margens da cidade, com todo o seu cortejo de servos posto nas encruzilhadas dos caminhos. De almas barulhentas que arrastavam pedras, paus e correntes enquanto lamentavam sua condição de perdidas neste mundo e pediam que se lhes fossem rezadas Aves Marias e Pais Nossos em refrigério. Das procissões de mortos que se seguiam estranhamente solenes, ainda que cantando alguma versão profana, terrivelmente errada, do Miserere ou do Stabat Mater


Dentre este amplo repertório de causos, especialmente me é caro o do cortejo sacro que, noite escura e quente de Quaresma, fiéis de velas nas mãos e senhoras de lenço e véu, subiu há quase quarenta anos atrás uma rua que não dava em lugar nenhum. Isso teria acontecido não muito antes dos meus pais se casarem e em um lugar não distante da casa onde moro agora. Subiram a dita rua cantando uma versão estranha do Ao morrer crucificado, teu Jesus foi condenado, por meus crimes, pecador, surpreendendo os próprios católicos praticantes que então ali se encontravam, sentados no meio fio, jogando conversa fora depois do jantar. Quem eram aquelas pessoas que, mesmo em cidade pequena, não eram conhecidos de ninguém? Para onde iriam? Trata-se então, reiteravam os que transmitiam a estória, de uma rua sem saída – coisa que já não é mais; naquele tempo, também particularmente mal iluminada e mal calçada, terminando em um matagal cerrado, limitado por cercas de arame-farpado. Sem dirigir um olhar sequer aos que lhes observavam, os devotos passantes seguiram até o final da rua e desapareceram sem mais.


Havia uma querida e há não muito falecida outra parenta de meu ramo materno que estava presente na ocasião; pessoa da maior seriedade, de quem não tive jamais porquê duvidar. Ela mencionou que, pensando que a procissão fosse dar meia volta, buscou um pano de crochê, uma imagem de Nossa Senhora Aparecida e um par de velas para enfeitar a porta de sua casa, como se é costume fazer em cidades pequenas quando se passa uma procissão. Depois de uma espera ansiosa, o estranhamento. A procissão não teria para onde ir, era impossível àquele grupo atravessar o matagal à noite, passar pelos cães que guardavam a propriedade fronteiriça, chegar a alguma outra rua… Mas não retornou, como se tragada pela noite. O esposo desta parenta foi um dos que compôs o pequeno grupo que se aventurou, com lanternas fortes de caçadores e pescadores experientes, mato alto adiante para verificar o que havia acontecido. Nem um capim pisoteado, nem uma pegada sequer na lama fresca, nem um pingo de cera no chão foi então encontrado. Espanto não pelo visto, mas pelo que não puderam ver, pois tratar-se-ia, talvez, de imagem em movimento do Purgatório. Este querido e corajoso parente a que me referi veio a se tornar evangélico mais tarde – agora já faz quinze ou vinte anos – e desde então se recusou veementemente a voltar a mencionar este episódio. Uma grande perda, sem sombra de dúvidas, já que abundam relatos similares em outras regiões do Brasil, de Portugal, da Galícia e das Astúrias, e eles possuem análogos importantíssimos no País Basco, nos Pirineus, na Catalunha, na Córsega, na Sardenha e na Sicília.


Contra este tipo de eventualidade, parecia ao povo simples não bastar as prescrições penitenciais dos padres. Multiplicavam-se então as devoções e os tabus complementares. Não se devia varrer a casa de fora para dentro. Não se devia cortar os cabelos. Não se devia embriagar. Não se devia promover ou ir a bailes. Não se devia comer doces (exceção feita à paçoca e ao arroz com leite e canela, doces quaresmais por excelência). Não se devia negar comida e principalmente água a quem se lhe pedisse. Não se devia atender ao primeiro chamado ao portão, pois se poderia tratar de convocação de alma penada ou de espírito mau. As unhas deveriam ser cortadas em sentido de cruz, principalmente as dos pés, a mão direita cortando as do pé esquerdo e a mão esquerda cortando as do pé direito. Não se devia estar fora de casa entre às 0h e às 6h. Não se devia brigar, discutir ou sequer fala demasiado alto. Não se devia ir dormir ou sair da cama sem fazer uma oração de proteção. Não se devia sair de casa sem carregar consigo, preferencialmente junto ao peito, crucifixo, imagem sagrada, água benta ou pequeno ramo de arruda. Não se devia jogar baralho ou assistir a brigas de galo. Não se devia, acima de tudo, comer carne de caça, principalmente às quartas e sextas-feiras, dias nos quais se recordam, respectivamente, a tentação de Jesus no Deserto e a sua Paixão e Morte. Tudo isso era reiterado e encontrava a sua máxima expressão na Sexta-Feira Santa, dia cercado de especial mistério, em que os cristãos celebram de alguma forma a morte de Deus.


Os causos que enfatizam os efeitos da não observância destes e de outros tabus quaresmais eram bastante comuns antes do avanço do agressivo pentecostalismo católico e evangélico sobre as tradições religiosas do interior do Estado e do peculiar desencantamento que tem caracterizado nossos dias. Uma destas estórias, conhecida em diversas partes do Rio de Janeiro, do sul de Minas Gerais e de outros locais do Brasil, foi referenciado e parcialmente transcrito em março de 2003 no n. 55 da revista Jangada Brasil:


“(…) João Jiló, na Sexta-Feira Santa, ao se levantar, pediu a sua mulher para matar uma galinha, porque naquele dia estava em casa e não tinha trabalho. Ante a negativa da mulher, que alegou respeito à Sexta-Feira Santa, ele resolveu ir caçar um bicho para comer. Pegou a espingarda, entrou pela mata, mas não encontrara nada. Já de volta, muito zangado e decepcionado, ouviu um passarinho piando baixinho. Armou a espingarda e o matou. Ao pegá-lo, o passarinho cantou:

João Jiló

Me mata devagar

Que eu sou rei cantador!

Mas João Jiló, desapiedado, matou, depenou, fritou e cozinhou o passarinho, enquanto este cantava repetidas vezes o mesmo refrão, referindo-se a cada ato praticado por seu algoz. Posto na panela, picado em pedaços, o passarinho cantava e ia crescendo, crescendo e crescendo, mais e mais, até transbordar. E João Jiló, contente, dizia a si mesmo: ‘Hoje eu vou é me regalar!’ Então comeu uma imensa quantidade de carne, até a sua barriga ficar enorme. Depois de comer o último pedaço que tinha à vista, de dentro da sua barrigona, o passarinho cantou:

João Jiló

Eu quero sair

Que eu sou rei cantador!

E João Jiló respondeu: ‘Sai pela boca!’

E o passarinho respondeu: ‘Não, pela boca eu não saio que tem cuspe!’

O diálogo assim continua com sucessivas sugestões de João Jiló e evasivas do passarinho, até que o caçador diz: ‘Ah, então sai por onde quiser!’

E o animal, agora um grande pássaro vermelho, arrebentou a barriga de João Jiló e saiu voando. Era o Demônio. Era o Diabo em figura de passarinho! Ora, João Jiló matou, depenou, fritou, cozinhou, comeu, desrespeitou a Sexta-Feira Santa! Mas o Diabo não morre… Ele deixou o João morto de barriga aberta e foi embora, com certeza fazer outra, com outro igual a ele…”

Páginas iniciais de outra versão da história de João Jiló, registrada em livro infantil da década de 1950.


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