Nas confissões cristãs antigas, que têm sua origem situada no primeiro milênio de nossa era, o ano todo não possui a mesma consistência e significado, sendo alguns períodos mais sagrados, mais fortes ou delicados, do que os demais. Parece que, apesar de seu estrato formador judaico, inicialmente o cristianismo não podia oferecer festas e cerimônias que pudessem competir com as muito difundidas e populares do paganismo e do folclore tradicional, muito menos ter a pretensão de substituí-las. A nova religião, em sua progressiva difusão, criou pouco a pouco seus ritos e festas, inventando quase ex novo um ano litúrgico próprio que, tanto por seu conteúdo místico e quanto por suas práticas externas, foi pouco a pouco menos superando e substituindo as celebrações pagãs do que as recobrindo, absorvendo e refundindo em algo novo. Não se tratou, portanto, de simples fenômeno de prestidigitação, de um camuflar das religiões antigas sob novas rubricas, mas de uma série de adoções, apropriações e cópias de ideias e formas de culto que fizeram com que não poucas cerimônias dos hebreus e dos gentios se refizessem e se preservassem incrustradas no novo sistema cristão que se firmava mais e mais a cada vez que um grupo era incorporado ao movimento dos seguidores de Jesus Cristo com as suas sensibilidades, pensamentos e práticas particulares. Com frequência os autores cristãos mostraram – como ainda fazem os puristas de nossos dias – surpresa e confusão diante de certas analogias entre os Mistérios que se celebravam tanto no interior das igrejas quanto nos templos antigos ou em lugares como clareiras escondidas nas florestas, os ermos cumes montanhosos ou profundas e escuras cavernas. Não se tratava, como insinuaram alguns, entretanto, tão apenas de uma diabólica coincidência, posto que isso muitas vezes se devia a esse tipo de crescimento cristão por fagocitose. E tal mecanismo, ao ser talvez a maior responsável pela notável expansão desta religião desde a Antiguidade até a Contemporaneidade, deixou suas marcas mesmo na Semana Santa, o centro do calendário cristão, ainda que continue aberto o debate de quanto ele representou uma cristianização do paganismo ou uma paganização do cristianismo.
Na Guatemala, a celebração da Semana Santa instalou-se desde o fim da década de 1510, quando aí chegaram os primeiros exploradores e conquistadores espanhóis. Enquanto os micróbios trazidos do Velho Mundo dizimavam a maior parte da população autóctone e os capitães Gonzalo e Pedro de Alvarado aliavam-se aos Kaqchíkél, herdeiros dos maias, contra os K’iché, seus primos-irmãos, para, depois de enfraquecer ambas as nações, instalarem-se como senhores da região em nome dos Reis Católicos, os locais iam tendo graus mais ou menos forçados de contato com um cristianismo que já trazia em si não só elementos judaico-cristãos, mas também das religiões tradicionais greco-romanas e ibéricas e dos diversos cultos orientais populares no Mediterrâneo pré-constantino-teodosiano. A Villa de Santiago de los Cabelleros de Guatemala, a primeira cidade espanhola da área, foi fundada, perto de Iximché, a antiga capital Kaqchikel, em julho de 1524 e transferida três anos depois para outro sítio menos sujeito às enxurradas, inundações, deslizamentos, tremores de terra e ataques indígenas. Esta segunda capital foi destruída por uma excepcional atividade do Hunahpú, El Volcán de Agua, em 1541, e seus sobreviventes se transferiram para abrigos no Vale do Panchoy, não muito distante. A terceira capital, La Antígua, joia do barroco espanhol na América Central, por sua vez, acabou ruindo com grande mortandade por causa dos terríveis terremotos de 1773 e 1774, sendo erguida sua quarta versão no Vale da Ermita. Esta última, Nueva Guatemala de la Asunción, absorveu em seu interior ao se expandir uma pequena cidade espanhola já estabelecida no local, crescida ao redor de El Carmen, um mosteiro carmelita fundado em 1620, e uma série de aldeias ameríndias que ainda ali subsistiam. Foi ela que deu origem à moderna Ciudad de Guatemala – termo espanhol derivado do náhuatl Quauhtemalan, lugar de muitas árvores.
Os primeiros clérigos cristãos chegados à região foram cônegos agostinianos e freis franciscanos e dominicanos, que trabalhavam tanto pela expansão da Igreja Católica quanto pela submissão dos locais à Coroa de Espanha. Os termos desta equação, contudo, estavam longe de ser facilmente harmonizáveis. Entre estes clérigos, por exemplo, encontrava-se o Fr. Bartolomé de las Casas (m.1566), ilustre historiador e reformador social, advogado incansável da humanidade dos ameríndios, denunciador da violência dos conquistadores espanhóis e primeiro bispo residente de Chiapas. Como missionário, Las Casas converteu ao catolicismo os Kekchí de Alta Verapaz sem usar de qualquer violência física e, bem ao contrário, conseguiu fazer com que os colonizadores se mantivessem afastados de suas terras tradicionais pelo menos até o meado do século XVII. Ele também sugeriu que o trabalho indígena fosse substituído pelo trabalho africano, e seus textos panfletários da década de 1510 foram significativos para que o imperador Carlos V (m.1558) tanto aprovasse leis de defesa aos ameríndios, que se chocavam de forma direta e violenta com a cupidez e os interesses mais imediata dos conquistadores espanhóis, quanto autorizasse que, em 1518, fossem transportados os primeiros milhares de africanos escravizados para São Domingos e a Jamaica. Tanto Las Casas quanto seus correligionários foram bastante ambíguos em relação às crenças e práticas religiosas dos nativos, sinalizando tanto sua prontidão em se converter à fé cristã e sua devoção a certos santos católicos quanto sua persistência em certos costumes tradicionais, que teimosa e criativamente reliam e recriavam no interior da nova fé imposta ou assumida.
Poucos mais de cinco séculos depois do contato inicial entre europeus e ameríndios no que viria a ser a Guatemala, verificam-se aí ainda vigorosas e esplendorosas celebrações de Semana Santa cujas origens se encontram igualmente nos mosteiros e catedrais castelhanas, aragonesas, leonesas, galegas, navarras, bascas e andaluzes e nas práticas oficiadas pelo antigo sacerdócio maia. Com grandes procissões, tapetes artesanais, carros alegóricos e rituais cuidadosos, todos muito detalhados e luxuosos, os locais celebram ostensivamente memória de Jesus Cristo que, na última semana de sua vida, entrou em Jerusalém para confrontar as autoridades judias e romanas, celebrar a sua Última Ceia, ser preso, ultrajado, morto e sepultado e, de acordo com o que contaram mais tarde seus discípulos, por fim resgatado da Mansão dos Mortos e ascendido ao Céu. No interior desta celebração, de forma híbrida e não muito velada, comemora-se também a resistência, a resiliência e a criatividade ameríndia, o legado de tantas pessoas que souberam tomar para si mesmas aquilo que lhes ofereciam seus opressores e, através disto, manter viva a chama que animava um mundo sociocultural que, visto externamente e sem muito cuidado, bem se podia acreditar partido pelo impacto de doenças antes desconhecidas e de uma violência de tal escala que nunca antes haviam experimentado.
Imagem: Vista do Hunahpú, El Volcán de Agua, desde uma das ruas de La Antígua, a terceira das capitais da Guatemala, ornamentada com uma alfombra montada para receber a passagem de uma das procissões da Semana Santa de 1980.
Durante o período da Quaresma, iniciado na Quarta-feira de Cinzas, a cada sexta-feira se realiza a celebração da Via Sacra e uma vigília em uma das igrejas coloniais de La Antígua. Cada um destes templos que acolhe a celebração é decorado pelos fiéis para comemorar uma passagem da Bíblia lida em um dos domingos que antecede o Domingo de Páscoa. As vigílias vão de 9h às 0h, e precisamente às 15h inicia-se a recordação dos eventos que Jesus Cristo teria vivido pouco antes de sua morte na cruz. No restante do tempo, orações são feitas diante da Hóstia Consagrada exposta à adoração dos fiéis, Confissões são ouvidas e um ou outro exorcismo é realizado. Muitas pessoas seguem das aldeias do interior do país até estas igrejas e passam as noites seguintes às vigílias acampadas em seu interior, adro ou escadaria, sob o olhar atento dos clérigos e a vista mais indiferente de venerandas imagens de madeira e gesso com séculos de idade. No dia deste seu uso, cada uma das igrejas exibe uma alfombra, certo tipo de tapete feito com serragem, areia colorida, farinha de milho, farinha de trigo, flores secas, sal, pó de café, agulhas de pinheiro, cascas de ovo, penas, pedaços de papel e tecido colorido, velas, cascas secas de frutas, tampas de garrafas, e outros materiais similares. Esta peça é costumeiramente cercada por flores frescas e grande quantidade de frutas, aí colocados como uma oferta aos santos e depois distribuída entre os peregrinos. Tais tapetes decorados são formados por grupos de devotos do santo ou da invocação mariana titular do templo, mas durante a Semana Santa é comum que os vizinhos destes locais e membros de empresas trabalhem juntos para engrandecer estas efêmeras obras de arte. O espaço assim ocupado no interior das igrejas é conhecido como El Jardín, e simboliza o Horto das Oliveiras, onde Jesus teria se retirado para orar depois de comer a Última Ceia e antes de ser entregue aos seus inimigos pelo beijo de Judas Iscariotes.
No Domingo de Ramos, La Antígua enche-se de viajantes que se reúnem para aí celebrar o dia em que Jesus entrou em triunfo na cidade de Jerusalém. De acordo com os Evangelhos, ele foi recebido pelos judeus com galhos e folhas nas mãos à guisa de saudação, daí o nome desta festa em particular. Folhas de palmeiras são coletadas e transformadas em buquês adornadas com flores e plantas medicinais e abençoados pelos padres na procissão que precede a celebração da missa do dia. Acredita-se que os vegetais assim bentos têm suas capacidades curativas potencializadas no caso de serem utilizados para a preparação de chás ou emplastros; os ramos de oliveiras e palmeiras assim acrescidos de significado simbólico são secos e queimados de acordo com a necessidade para afastar temporais, enchentes, trovões e tremores de terra. As mais concorridas celebrações acontecem nestes dias nas antigas igrejas de La Merced, de San Francisco e da Escuela de Cristo, e os guatemaltecos penduram cortinas, flores, laços de tecido e decorações finamente recortadas em papel roxo, vermelho, lilás e amarelo nas portas, janelas e postes diante das quais passam os cortejos, representando assim sua homenagem ao sofrimento e realeza do Rei Padecente. A procissão do Domingo de Ramos inclui as ilustres andas, espécie de carros alegóricos, que exibem figuras representativas de Jesus Cristo, de Nossa Senhora das Dores e outras invocações marianas, de Santa Maria Madalena, de Santa Maria Salomé, de São João Apóstolo, de São Tiago Maior (ou Mata-Mouros), de São Tiago Menor – que é interpretado como cavalariço de seu homônimo –, de São Paulo Apóstolo, de São Simão Zelota, de São Judas Tadeu, de São Martinho de Tours, de São Martinho de Porres, de São Marcos Evangelista – comumente dito São Marcos do Leão –, de São Francisco de Assis e de Santa Marta de Villajoyosa – também chamada de Santa Marta Dominadora e de Santa Marta do Dragão, por ser representada pisando uma serpente alada, que os nativos locais insistiram em considerar uma outra entidade protetora e não um símbolo do Demônio. Tais aparatos algo carnavalescos, que podem chegar a quase vinte metros de comprimento e centenas de quilos de peso, são carregadores nas costas por homens conhecidos como cucuruchos, vestidos com suas características túnicas roxas com cós e lenços brancos. Originalmente considerada uma ação penitencial, o ajudar a carregar um destes grandes andores é agora tido também um privilégio, muitas vezes de transmissão hereditária; e cada um dos cucuruchos inclusive paga uma pequena taxa mensal à irmandade responsável para poder participar do ritual anual.
Procissões semelhantes são realizadas na segunda, terça e quarta da mesma semana, representando respectivamente o encontro no Calvário de Jesus Cristo com Verônica e Maria Madalena, o encontro no Calvário de Jesus Cristo com sua Mãe, e a traição de Judas e prisão de Jesus Cristo no Getsêmani. Fanfarras e percussionistas tradicionais, assim como o característico som das cornetas e das carracas, certo tipo de matraca, acompanham os cortejos que celebram os últimos dias do Nazareno na terra, depois dos quais as pessoas se reúnem em quiosques para comer, beber, dançar e jogar cartas e dados. Na manhã da Quarta-feira Santa, as igrejas, sedes das irmandades e oratórios particulares são varridos e lavados com água recolhida em poços, lagos ou rios, representativas das águas sobre as quais o Livro do Gênesis diz que pairava o Espírito de Deus antes da Criação. Como é crença comum entre os guatemaltecos que a poeira e outros detritos atraíam espíritos malignos ou maliciosos, mesmo demônios, ao invés de simplesmente descartar aquilo que se retira dos espaços durante esta limpeza ritual, muitos são aqueles que coletam o lixo cuidadosamente em bolsas plásticas e os depositam juntos de pequenos oratórios suburbanos, rurais ou silvestres dedicados a entidades ligadas às doenças e à morte. Esta limpia representa uma renovação física e espiritual que prepara o caminho para o renascimento do mundo representado na Páscoa. De modo significativo, tal rito é estreitamente ligado à tradição de la quema del Diablo, celebrada a cada ano na véspera da festa da Imaculada Conceição de Maria.
No início da tarde da mesma Quarta-feira Santa, grupos de cidadãos notáveis, incluindo muitos políticos locais, realizam uma procissão no qual conduzem folhas de palmeiras e oliveiras, flores artesanais feitas deste mesmo material e cestas cheias de frutas para a Igreja de San Pedro. Depois de devidamente abençoadas por um padre, estes vegetais são pendurados em postes e arcos de madeira, meticulosamente coberto de cipós e folhas verdes, ramos de ciprestes e bromélias lilás e vermelho-sangue, e dispostos em lugares pelos quais passam as procissões mais importantes dos três dias seguintes. Estruturas similares, mas algo mais intrincadas, semelhantes a grades ou andaimes, encimados por uma grande cruz verde ou galho mais ou menos cruciforme, são erguidas e recheadas diante dos os retábulos das igrejas, ainda que sejam deixados abertos espaços para que as imagens dos santos aí presentes possam ser vistas pelos fiéis. Todo o processo é presidido por velhas senhoras, que se vestem com trajes tradicionais e portam um tipo de tiara ou cocar em suas cabeças, enquanto guiam mulheres e homens mais jovens e balançam um turíbulo fumegante, que evoca as nuvens de chuva das quais se espera que venha o necessário para o abundante crescimento dos vegetais durante o ano corrente.
Imagem: Uma das muitas procissões da Sexta-feira Santa realizadas na cidade de San Pedro de La Laguna, cidade localizada na margem sudoeste do Lago Atitlán, na qual certas tradições maias localizavam o ponto a partir do qual o mundo material foi criado. Note-se o arco adornado com frutas e flores.
Nos últimos minutos da Quarta-feira Santa, inicia-se a corrida noturna de San Juan Carajo, que foi quase extinguida pelas autoridades eclesiásticas na Ciudad da Guatemala e em La Antigua, mas ainda é um evento considerável em San Pedro de La Laguna, em Santiago de Atlitán e em outras cidades do interior do país. Em uma curiosa encenação ritual de trecho obscuro dos Evangelhos (Mc 14:50-52), homens semi-nus, enrolados em lençóis, atravessam as ruas de uma ponta a outra das cidades, entre gritos, risadas, piadas jocosas, cantos libertinos e encenações de atos sexuais; enquanto mulheres solteiras, postadas nas portas e janelas das casas, cantam hinos solenes a respeito do sangue, mel e leite que deveriam ser simbolicamente derramados no adro da catedral, no R’muxux Ruchiliew, o Umbigo do Mundo ou Vulva do Universo, portal que levaria ao reino subterrâneo onde estão os ancestrais venerados. Nesta celebração, além de uma curiosa imagem mitrada de São João Apóstolo, conduz-se também imagens do Senhor dos Passos, de São Nicolau de Mirra e de Nossa Senhora da Conceição, invocação mariana cujos pés se firmam sobre uma serpente e a lua crescente. Elas são precedidas pelo mais velho sacristão da cidade, que abre o cortejo vestido inteiramente de branco e tocando uma trombeta feita de uma grande concha. O pequeno andor de São João é rapidamente conduzido em um movimento repetitivo de frente para trás entre a imagem da Senhora da Conceição e as outras duas, que abrem a procissão. Cada vez que o andor de São João está à beira de se chocar com o que leva a imagem da Virgem, ele é detido e erguido no ar duas ou três vezes entre aclamações, palmas e risos. É considerada uma honra para os jovens carregar o andor do Discípulo Amado nestes movimentos peculiares, pois se trata de uma boa oportunidade para demonstrar a seus colegas e competidores, assim como para potenciais parceiras sexuais, sua força e perseverança. Também se trata de algo um tanto quanto perigoso, pois as imagens são pesadas, as ruas são irregulares, muitos carregadores estão exaustos e/ou bêbados desde o início do cortejo, e os rápidos movimentos ritualmente previstos, que devem ser executados de forma precisa e numa escuridão quase completa, podem acabar resultando em acidentes realmente graves. Havia antigamente o costume de se jogar pedaços de vidro quebrado e de obsidiana, assim como bolinhas-de-gude e mesmo brasas incandescentes, no caminho desta procissão, porque era corrente a crença de que, se os homens nela envolvidos fossem capazes de resistir a tal teste, isso era sinal de serem particularmente viris, férteis e resistentes à magia negra. Nesta mesma noite os buracos nos quais são erguidas as cruzes no interior das igrejas durante o ato litúrgico da Paixão de Cristo, na tarde da Sexta-feira Santa, são abertos, limpos, incensados, lavados com água-de-flores e ungidos com azeite bento. Espera-se também que os cucuruchos já casados tenham então relações sexuais com suas esposas, atos dos quais a partir daí se espera que se abstenham até depois de participarem da Missa de Páscoa.
Na manhã da Quinta-feira da Semana Santa, enquanto os clérigos celebram a solene liturgia dos Santos Óleos ao redor da cátedra episcopal, as irmandades de devotos, os vizinhos das igrejas e funcionários de empresas patrocinadoras começam a montar nos interiores das igrejas e nas ruas das cidades as alfombras sobre as quais devem passar as procissões do dia seguinte. Estas peças, que podem demorar meses para serem planejadas, que tardam não menos do que 24h para serem montadas, e que demandam grande quantidade de material para serem efetivamente constituídas, são dignas de serem destruídas pelos passos dos cortejos que conduzem a imagem de Jesus Cristo ou da Virgem Maria, representando para os fiéis – tais como as esculturas de manteiga e mandalas de areia colorida que às vezes são feitas como parte de certos exercícios ascéticos budistas ou hindus – que tudo é impermanência. À margem das procissões principais, as imagens da Virgem das Dores, de São João Evangelista, de Nossa Senhora da Conceição, de Santa Maria Madalena, de São Pedro Apóstolo, de São Martinho de Tours e de São Martinho de Porres são retiradas de seus nichos nas igrejas, adornadas com vestes coloridas e flores, incensadas e saudadas com danças, para ajudar a garantir que a estação das chuvas que coincidentemente se inicia traga água do céu na medida certa para fazer crescer o milho. Etnógrafos observaram que tais danças são antigas, quase certamente mais antigas do que a conquista e que cristianização, preservando em seu interior elementos das danças do jaguar e do veado antes difundidas desde a Califórnia até a ponta setentrional da Cordilheira dos Andes. A imagem do Cristo espera então no interior das igrejas, venerado com salmos e velas votivas ao lado de pinturas e estátuas de São Nicolau de Mirra, que se considera seu principal assessor.
Por volta das 3h da manhã de Sexta-feira da Paixão, inicia-se o som das rezas em latim e o matraquear das carracas na Igreja de La Merced, enquanto os cucuruchos trocam suas vestes roxas com cós e lenços brancos por outras pretas com cós e lenços vermelho-sangue. Ainda antes do amanhecer, as decorações anteriormente coloridas que foram espalhadas por La Antigua são retiradas ou cobertas, substituídas por outras inteiramente cinzas, negras e vermelhas, que recordam e lamentam a crucificação e morte de Jesus Cristo. As andas deste dia mostram cenas do Nazareno diante de Pôncio Pilatos, flagelado, atado a uma coluna de pedra, carregando sua cruz, crucificado e morto, enquanto as fanfarras seguem tocando temas solenes e fúnebres, que incitam a tristeza nos presentes. As alfombras vão desaparecendo à medida que os cortejos fazem o percurso previsto – e os responsáveis quase imediatamente começam a montar tantas outras, que devem estar diante das procissões que ainda estão por vir nas próximas horas. Há todo um cuidado para permitir que o padre, sacristão ou mestre-de-irmandade que guia a anda principal da procissão seja o primeiro a pisar na alfombra. A tradição de enfeitar o caminho das procissões é registrada em crônicas e textos litúrgicos como já antiga na Espanha dos séculos VIII e IX, mas muitos rituais maias também envolviam cortejos que eram honrados de forma similar.
Imagem: Uma das muitas procissões da Quinta-feira Santa realizadas em La Antígua prepara-se para conduzir uma anda com uma imagem do Cristo agonizante no Getsêmani sobre uma bela alfombra.
O séquito saído de La Merced encontra-se em certo ponto do centro histórico com um outro que, conduzindo andas que trazem sobre si imagens da Virgem Maria e das Santas Mulheres em luto desesperado, saiu mais ou menos simultaneamente da Igreja da Escuela de Cristo. Este segundo cortejo é formado quase que exclusivamente por mulheres que trajam vestidos e véus negros para lamentar a morte de Jesus Cristo e não raramente chorar também seus filhos, maridos e demais parentes que perderam para a doença, a violência ou os acidentes. As ruas cobrem-se de tristeza à medida em que os belos tapetes são desfeitos pelos passos dos fiéis e o substrato de paralelepípedos vai ficando novamente visível sob o pó colorido que antes o cobria. Milhares de guatemaltecos e viajantes enlutados, normalmente trajados em cores escuras, acompanham as procissões em meio a cânticos e orações, levando em suas mãos incensários – nos quais se queimam copal, olíbano, mirra, palo santo, manjericão ou simples folhas de pinho ou eucalipto –, lanternas de papel decorado ou simples velas. A maioria encontra-se em silêncio, mas alguns não conseguem se conter e desandam a chorar. Uma imagem do Cristo morto é sepultada na Catedral de San José pouco antes da meia noite e muitos são os fiéis que se aproximam desta representação para, de joelhos ou prostrados, confessar suas transgressões, queimar incenso e deixar moedas, pedindo por boas colheitas, saúde e prosperidade. As pessoas retornam para suas casas ou hospedagens em silêncio, pois este é um dia considerado perigoso, em que os demônios e as almas malignas ou simplesmente maliciosas têm permissão de Deus para tentar e violentar todo aquele que seja demasiado barulhento ou irreverente. Esse modo de proceder, contudo, é relativamente recente, além de eminentemente feminino e infantil, sendo mantido em certas áreas suburbanas ou rurais o costume antigo, que é o dos homens maduros se reunirem ao ar livre para beber e dançar ao som das marimbas e dos tambores desde o sepultamento de Cristo até o vestimento para a primeira procissão do dia seguinte. Por outra parte, conta-se que então, morto o Cristo, seu espírito segue para os campos de milho, onde irá fecundá-los, fazendo crescer as sementes; sua alma é descrita como a brisa que sopra o orvalho e a chuva sobre os milpas cheios de espigas. Ora, a Semana Santa coincide com a mudança entre as estações seca e chuvosa na Guatemala, não podendo ser dissociada de forma nenhuma dos antigos rituais agrários presentes entre as populações da região desde tempos imemoriais.
O clima fúnebre, mas esperançoso, prolonga-se durante o Sábado de Aleluia. Depois do catártico rito de malhação do Judas, por volta das 12h, atravessa o centro de La Antigua, desde a Catedral de San José até a Igreja de San Filipe de Jesús, mais uma procissão em memória do luto da Virgem Maria pela perda de seu Filho. Neste dia as imagens de Jesus Cristo estão guardadas, e todas as andas são carregadas exclusivamente por mulheres, enquanto os homens das irmandades via de regra se reúnem em suas igrejas titulares para a oração do rosário. Por volta das 22h, acendem-se fogueiras diante das igrejas e, com a bênção dos padres sobre os Círios Pascais, as comunidades começam a celebrar a ressurreição de Jesus Cristo, o Fogo Novo. O Domingo de Páscoa substitui o luto e apreensão dos dias anteriores por uma atmosfera festiva, marcada desde as primeiras horas da manhã pelo alegre toque dos sinos, foguetórios, cantos, danças e bebedeira. Muitos guatemaltecos acreditam que quanto mais alto o estrondo dos fogos de artifício então acendidos, quanto mais alto eles sobem e mais luz emitem, mais fortemente os demônios e maus espíritos são repelidos dos locais habitados pelos seres humanos. Em meio ao grande barulho das explosões, a procissão do Senhor Ressuscitado encontra pessoas sorrindo e aplaudindo, crianças agitando bandeiras coloridas, aclamações rituais, confetes sendo lançado das sacadas e suspiros de alívio, pois mais uma vez o mundo pertenceria a Deus e o Diabo e a Morte estariam limitados por Seu Poder.
Em tudo isso, o sincretismo católico-ameríndio aparece de formas nada sutis para aqueles que têm, como dizia certa professora minha, não só olhos de olhar, mas olhos de ver. No período pré-colonial, os nativos mesoamericanos realizavam cortejos nos quais ídolos, sacerdotes e dignitários de diferentes tipos eram transportados em palanquins e liteiras não muito diferentes dos carros alegóricos característicos da Semana Santa guatemalteca. De modo mais amplo, toda a sua vida político-religiosa era marcada por cortejos solenes que sacralizavam o espaço ao recortá-lo de uma ponta a outra. Também se realizavam jejuns de vários dias em preparação a certas celebrações especiais. Nas alfombras, nas andas, nas vestes luxuosas que cobrem as imagens, nos paramentos dos sacerdotes e alfaias das igrejas, aparece com frequência a imagem da mariposa, símbolo maia dos ancestrais veneráveis, e da borboleta, que nesta mesma cultura remete ao sol e à vida após a morte. Estas figuras são desconhecidas nos objetos equivalentes encontrados em outras partes do mundo católico, constituindo, portanto, importante elemento local. De outra parte, o símbolo mesmo da cruz, glorificado na Sexta-feira Santa, já era conhecido na América Central e na Chiapas pré-colombiana e ainda é utilizada em muitas partes desta mesma região principalmente por suas virtudes apotropaicas, ou seja, para afastar das pessoas e dos locais os maus espíritos, as feitiçarias, os demônios, a pobreza, a doença e o mau-olhado.
Imagem: Um aristocrata ou escultura bastante realista de um aristocrata sendo carregado em uma liteira ou palanquim, acompanhado de corneteiros, uma criança ou anão e um cachorro. Fotografia panorâmica de vaso maia exumado em Yucatán e datado do século IX ou X.
A Virgem Maria das procissões guatemaltecas da Semana Santa, representada em meio a lágrimas, coroada e ornada com símbolos lunares, representa não só a Mãe de Jesus, mas também e simultaneamente a entidade chamada de Ixchél ou Chakchél, senhora do arco-íris e do crepúsculo, popular deusa maia dos séculos XV e XVI, tradicionalmente caracterizada como uma mulher madura ou de meia idade, com elementos de jaguar e serpente, que presidia as estações da lua, as mudanças climáticas, a medicina, a feitiçaria, o contato com o mundo invisível, os partos e o crescimento das crianças, sempre chorando por aqueles seus filhos que morreram violentamente ou antes do tempo devido. Las Casas escreveu como Ixchél era invocada como senhora das cabanas-de-suor, lugar terapêutico para onde as mulheres maias deveriam ir antes e depois do parto. Também descreveu como sua invocação foi, diante da insistência dos espanhóis, rapidamente substituída pela da Virgem do Bom Parto ou pela Virgem das Dores – contudo, sem deixar de ser também Ixchél. Cronistas do século XVIII registraram como mulheres indígenas que queriam garantir um bom casamento, fertilidade ou a cura de seus filhos dirigiam-se para o santuário da deusa da lua na Ilha de Coxumel, na costa leste de Yucatán, e que não muito distante desta se encontrava uma Isla de las Mujeres, lugar assim chamado por conter oratórios dedicados a divindades lunares. Eles também registraram como este complexo ritual estava sendo então recoberto ou assimilado à devoção de Nossa Senhora das Dores, Sant’Ana, Santa Maria Madalena e Santa Maria Salomé.
Na tradição oral dos guatemaltecos, o afastamento entre a Mater Dolorosa transportada nas procissões da Semana Santa e aquilo que dela imagina a ortodoxia católica é ainda maior do que se poderia esperar. Em primeiro lugar, ela é considerada uma figura distinta, não só uma variação representacional, de Santa Maria da Natividade, cujo ciclo de veneração encontra-se cronológica e simbolicamente distante das festas da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus, pois vinculada prioritariamente ao Natal – e que os nativos dizem que é a esposa de São Gregório Magno, que habita em um luxuoso palácio cuja entrada se localiza na parte mais funda do Lago Atlitán, e que aprisiona e coloca a seu serviço as almas de tantos quantos aí se afogam. A Virgem da Conceição transportada na corrida noturna de San Juan Carajo, por sua vez, é assumida como uma versão lasciva, fértil e fertilizadora da Mater Dolorosa-Ixchél, e o que se diz é que, durante os movimentos de simulação sexual do cortejo noturno entre a Quarta e a Quinta-feira da Semana Santa, ela é simbolicamente engravidada por São João Evangelista, a fim de dar à luz a um mundo novo na Sexta-feira da Paixão. Conta-se que até o início do século XX era costume que, na noite do sepultamento de Jesus Cristo, a imagem de São João ficasse presa na cadeia velha de La Antigua junto com os bêbados e desordeiros, para evitar que mantivesse relações com a Mãe do Nazareno durante um período em que todos os cristãos deveriam se abster de qualquer tipo de contato sexual. Ele era libertado apenas ao meio dia do Sábado de Aleluia, em meio a grande alvoroço, depois que o sacristão da igreja que custodiava a imagem pagava às autoridades policiais uma simbólica multa de duzentos pesos. Aparentemente estas são tradições muito antigas e que têm alguma ligação com histórias de frades que violavam seu voto de celibato fazendo sexo com religiosas e mulheres casadas, algumas das quais eventualmente vinham a engravidar, mesmo às vésperas dos dias mais santos do calendário litúrgico. Na alquimia da religiosidade popular, tais anedotas licenciosas foram sendo fundidas com elementos remanescentes da antiga cosmologia ameríndia e com os atos devocionais do catolicismo espanhol para dar origem a misturas completamente inusitadas.
Imagem: A Mater Dolorosa-Ixchél contempla o recolhimento do corpo de Jesus Cristo-MaNawal Jezukrista, recém-descido da cruz por José de Arimateia, sobre uma anda conduzida em uma das procissões da Sexta-feira Santa na Ciudad de Guatemala. Fotografia tomada por Giovani Minera na Semana Santa de 2015.
De um modo mais profundo, todo o sistema de crenças e práticas rituais maias que afirmava que o mundo era criado, sustentado e recriado a cada dia, mês e ano pelo meritório derramamento do sangue dos nobres, dos dignos e dos bem conectados ao mundo invisível também vai ao encontro da narrativa cristã sobre o caráter poderoso e salvífico do sangue de Jesus Cristo derramando na sua Paixão e Morte. Durante séculos, e talvez de forma consistente ainda em nossos dias, os nativos mesoamericanos descreveram a vida das pessoas e do cosmos como equivalente a uma planta iluminada pelo Pai Sol, cuja geradora, esposa e mantenedora é a Mãe Montanha. As espigas de milho, tão fundamentais para a subsistência da região, são consideradas como coagulação do sacrifício redentor do Nazareno, enquanto este é honrado como MaNawal Jezukrista, ancestral mítico dos nativos, que teria sido quem lhes ensinou o cultivo desta planta e trouxe suas primeiras sementes para a superfície depois de roubá-las dos guardiães do mundo subterrâneo. Isso considerado, bem se pode afirmar que as celebrações realizadas em La Antigua e em outras partes da Guatemala durante a Semana Santa – oportunamente sobrepostas ao período do uayèb, os cinco dias perigosos que marcavam o fim do ano solar no antigo calendário maia –, são ao mesmo tempo cerimônias cristãs e ritos tradicionais ameríndios pelos quais a vida ciclicamente se renova pela luz do Pai Sol e as lágrimas da Mãe Montanha. Não à toa, trata-se justamente do momento em que as primeiras chuvas do ano fertilizam os campos lavrados, um fenômeno que está associado na religiosidade popular ao choro da Virgem Maria por seu Filho e ao gotejamento do sangue de Jesus flagelado e crucificado, capaz de trazer tudo o que subsiste de volta à vida.
De modo que talvez seja algo constrangedor para os que estão acostumados a pensar a história apenas em termos de uma luta entre bem e mal, apesar de toda a violência implicada no processo, certos autores indicam que a conquista espanhola não só não destruiu a cultura maia pré-existente no território que hoje é a Guatemala, mas foi fundamental na revitalização e continuidade desta. De modo efetivo, as crenças e práticas da Semana Santa atestam bem isso, retendo, em verdadeira fusão com noções e ritos centrais do calendário cristão, um muito consistente sistema de mito e rito de distinta origem ameríndia. Certos estudiosos supõem que o trauma da Conquista destruiu a maior parte da cultura nativa, mas aparentemente tudo aquilo que havia mudado por causa deste evento em sua concreta experiência no mundo foi acomodado pela extraordinária capacidade dos habitantes autóctones da América Central de refazer seus modelos cosmológicos e esquemas rituais sem destruir aquilo que constituía seu eixo fundamental e elã vital. Para os herdeiros dos maias, a vitória espanhola sobre suas forças não foi um evento catastroficamente definitivo, mas uma espécie de morte temporária seguida de ressurreição, não muito diferente de outras renovações cósmico-históricas periódicas que haviam ocorrido antes do primeiro europeu se aventurar nas águas do Oceano rumo às Índias, e que continuam a ocorrer ainda em algum grau a cada mudança de estação e a cada Semana Santa. Em completa coerência com tal estrutura de pensamento e sentimento, os antigos aristocratas e sacerdotes maias acolheram de modo favorável os primeiros missionários católicos, adotaram rapidamente novos nomes de Batismo, interpretaram aquilo que lhes estavam sendo proposto ou imposto em seus próprios termos e permaneceram em seus cargos tradicionais, guiando seu povo em termos políticos e espirituais tanto quanto antes da chegada dos espanhóis. Ao invés de serem convertidos ou de se aferrarem a tradições engessadas, os maias fundiram às suas próprias crenças e rituais o catolicismo espanhol, dando origem a uma série de fenômenos completamente novos. Em contraste com os relatos fatalistas da conquista encontrados, por exemplo, entre os mexicas e os índios das Terras Baixas da América do Sul, a tradição oral guatemalteca enfatiza o poder mágico que fez com que seus antigos reis, nobres e sacerdotes escapassem da destruição que se abateu sobre outros povos americanos por uma astuta adoção e instrumentalização do catolicismo. Conta-se também como seus deuses, ligados à natureza e, portanto, imunes à destruição permanente, não se esconderam sob as imagens trazidas pelos espanhóis, mas verdadeiramente renasceram como santos católicos, de tal forma que mesmo os europeus, na Guatemala, pensando estarem sendo apenas cristãos, também rendiam culto aos verdadeiros e permanentes donos da terra.
Imagem: Procissão do Senhor Morto em Santiago de Atlitán, cidade localizada às margens do lago de mesmo nome, no Departamento de Sololá, fotografada em março de 2005.
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