Dentre as muitas coisas que podemos falar sobre Magia, gosto de pensá-la como a intenção aplicada de um ser na retomada de consciência do seu próprio poder.
Eu diria que o que nos leva a trilhar esse caminho, mesmo que ele seja um que vai na contramão da “normalidade social”, é uma persistente sensação. Um sentimento que Lyam Thomas Christopher (Kabbalah, magic and the great work of self-transformation) descreve como o de um náufrago, que acaba de acordar em uma praia, rodeado pelos escombros de um navio e sem nenhuma memória de seu estado anterior. O náufrago se sente perdido. Procura nos escombros pistas, qualquer coisa que lhe aponte na direção da redescoberta de sua verdadeira identidade. Conforme sua vida progride ele faz o melhor que pode para se adaptar a sua nova história e a sociedade que o acolheu, mas a memória daquela praia e do mistério que ela invoca não vai embora. Está sempre com ele, como um ruído de fundo chato, um incômodo criativo.
Será que o que conhecemos como nossa história, é realmente tudo o que nos define?
Considerando que um dos mais antigos e comuns atributos mágicos são as palavras, às vezes me pego pensando sobre elas e sobre suas coincidências – ou não – para lá de curiosas. Não é interessante como a palavra de língua inglesa “history” pode ser lida como “his – story”? E a palavra “mystery” como “my – story”? Quanto mais resgato os escombros do meu naufrágio interno, mais percebo que minha história de fora possa ser na verdade só uma pequena parte compartilhada, que só encontra completude junto aos meus inquietos e pessoais mistérios. E a magia é a chave que encontrei para tentar conhecer um pouco melhor esses mistérios.
Esse sentimento de inadequação e incompletude, por mais que seja desconfortável de encarar, é combustível para a extensa e muitas vezes frustrante busca por reconexão das minhas partes, o famoso “religare” do Latim que parece ter sido sufocado por montanhas de dinheiro, status e poder que permeiam a maioria das religiões organizadas. Essa sensação brota do abismo mais profundo do meu ser, de um não-lugar da minha consciência que Freud nem de consciência chamaria. Será que a magia poderia ser comparada a uma ponte? Um conjunto de práticas e recursos que otimiza a conexão entre o que eu conheço como “eu” e o mar de mistérios que ele chama de inconsciente?
E acredita-se – tanto na magia quanto na psicologia – que esse inconsciente nos governa muito mais do que gostaríamos de admitir.
Existem diversas práticas mágicas que intendem alterar o estado de consciência do magista, afrouxar o emaranhado de controle e fazer contato com aquela parte de nós que flerta com o ilimitado, que transgride as formas de todas as coisas, inclusive da visão limitada do nosso próprio poder. Talvez você já tenha tentado feitiços que consistem em imprimir uma imagem ou palavra em seu subconsciente, olhando rapidamente para ela em um estado alterado de consciência e fazendo o que pode para esquecer de tudo depois, deixando o verdadeiro mago que te habita trabalhar em paz para entregar – no tempo adequado – o seu pedido.
Se a magia reconhece nesse meu profundo um poder latente, um poder que muitas vezes pode ser adormecido, desacreditado e enfraquecido pela mente consciente – perturbada pelas oscilações e ilusões do mundo exterior – é de se esperar que meu processo como magista envolva prestar mais atenção em quais são as forças, ideias e sentimentos que a construção do meu ego acabou por exilar. Porque tudo que eu varri para debaixo do tapete, tudo que tentei de todas as formas esquecer e esconder, ocupam agora umas das minhas – recém-descobertas – posições de maior potencial criativo.
E quem disse que é fácil jogar essa luz? Receber de volta e de braços abertos essas partes que a muito tempo já havia julgado que não me pertenciam?
O caminho mágico, na prática, é muito mais humano do que o difundido pelas camadas superficiais das nossas expressões midiáticas. Talvez eu devesse ter ficado no encanto pelas palavras, pelas roupas, pelos artefatos, mas de que ia adiantar se contentar com a superfície, se meu barco já havia mesmo naufragado?
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