Foi lendo Jan Assman que conheci John Spencer e a teoria dele acerca do Egito e sua religião “de mistério”, que teria sido levada por Moisés aos Hebreus. Modelo esse que foi seguido com alguma ou outra modificação por Reinhold (voltaremos nesse) e Schiller. Ora, na verdade, não quero entrar nessa discussão propriamente (porém, sinto que farei mais do que gostaria), mas em uma que tangencia isso tudo. Honestamente, quero falar sobre a ideia da religião do Egito antigo ter uma face exotérica e outra esotérica e de como isso pode ser de alguma maneira encontrado hoje em dia. Ainda, gostaria de apontar novamente para aquela velha pergunta: afinal, tudo veio do Egito? (mas não quero responde-la, não de verdade – e nem vou me preocupar com isso).
A Maçonaria e a Ordem Rosa-Cruz clamam suas origens míticas no antigo Egito. Supostamente, o Tarô é Egípcio. Aparentemente qualquer coisa de cunho místico e mágico tem a ver com este local. Ainda, se você é Cristão ou Judeu (e faz parte da grande matriz religiosa que domina o ocidente – ou só está no ocidente), o Egito Antigo é tudo aquilo que sua religião não quer ser (cheia de idolatria e magia). Claro que atribuir tudo ao Egito é absurdo, mas tem gente séria pensando em Egito há muito tempo e essas pessoas já levantaram mil teorias. Com a Pedra de Rosetta e o achado de material arqueológico diverso que vem sendo acumulado ao longo do tempo, hoje sabemos mais do que muitos que pensaram Egito ao longo do tempo, mas isso não quer dizer que devemos descartar suas ideias.
Assman pega diversos autores do século XVII e XVIII, por exemplo, e mostra em alguns de seus livros como muitos desses pensadores desenvolveram várias teorias acertadas ou muito próximas do que se entende por correto. É Assman também quem enfatiza fortemente a “ruptura” religiosa que Akhenaton, aquele Faraó do século XIV a. C. que reinou durante 14 anos (aproximadamente) e que acabou com tudo que havia de religioso ao instituir uma religião que cultuava apenas o Disco Solar como o que dá a vida e regula o mundo. Imaginem agora… lá no ano 1.300 antes de Cristo, um cidadão que provavelmente percebeu (de acordo com Assman) que o Sol era fundamental no mundo natural, resolveu acabar com todos os deuses, cultos e festivais e estabelecer uma religião basicamente preocupada com o “mundo natural”.
Estou falando disso para que tenhamos na cabeça que Akhenaton basicamente instituiu um tipo de monoteísmo e simplesmente rompeu com tudo que havia no passado. Rompeu tanto que derrubou estátuas, fechou templos, riscou nomes das paredes e compôs hinos simplesmente ignorando toda a coisa religiosa anterior. Bem, depois que morreu, fizeram o mesmo com ele e sua religião. Entretanto, o “trauma” ficou e isso impactou o mundo desde então. Outro argumento de Assman.
Curiosamente, apesar da revolução causada por Akhenaton, há pessoas que entendem que a religião Egípcia (e perdoem-me aqui por achatar o Egito antigo) já exibia um componente monoteísta. A ideia aqui era que havia uma religião “do povo” e uma “da elite”. Mais ou menos como os mistérios menores e maiores de Elêusis (que teriam sido diretamente inspirados nessa bipartição da religião Egípcia). Então, vejam que eu dei uma volta no Faraó monoteísta para dizer que essa ideia de um princípio único de alguma maneira tende a aparecer.
Para o “povo”, os deuses conhecidos e as imagens e todo o teatro eram necessários. Entretanto, para quem era mais letrado ou “importante”, a verdade. E a verdade seria: existe só um Deus e ele é imanente. Ele seria o único e o todo. O argumento é que essa divisão entre religião do “povo” e da “elite” seria fundamental para a manutenção das coisas como eram. Enfim, curiosamente, estamos conversando sobre um antigo Egito que teria inventando o monoteísmo – ou por Akhenaton ou pelo seu culto de mistérios.
Ora, mas então isto era verdade? Não importa. Vejamos como isso influenciou diversos pensadores – inclusive Karl Leonhard Reinhold (1757-1825), Maçom, que alegou que essa religião Egípcia de mistério era idêntica ao monoteísmo de Moisés. Ou seja, que Moisés, iniciado nesses mistérios (isso, outros como Fílon de Alexandria, já tinham levantado) teria os passado integralmente para os Hebreus (imagine a Arca da Aliança com os Querubins com cabeça de animais e considere os Deuses Egípcios) e dos Hebreus teria caído na Maçonaria. Além disso, para Reinhold, ai também estaria a origem do Hermetismo (nascido no Egito Helênico). Temos aí uma origem indireta da Maçonaria (e de todas as sociedades místicas que nasceram dela) no Egito.
Deixemos claro, Reinhold teve por base algumas fontes não tão precisas e deu algumas “marteladas”. Entretanto, não vamos nos prender nisso, ou o ensaio ficaria por demais longo. Vamos pegando as ideias que foram jogadas ao tempo e tentando entender como isso pode ter influenciando o pensamento que vivemos e conhecemos hoje.
Assman puxa daí também a ideia de que a iniciação pode ser compreendida (nesse contexto) DESILUSÃO (ênfase nossa). Bem, chegamos então em uma coisa interessante. Por essa suposta religião de mistério Egípcia que teria nos influenciado tanto foca no levantar do véu e em encontrar abaixo do véu uma ascensão à unidade. Ora, é como se a religião dos mistérios “menores” fosse do uno para o múltiplo, na ordem da manifestação do mundo (como o raio da Árvore da Vida), mas os mistérios “maiores” fossem o subir da escada e fosse do todo para o um (novamente, essa coisa do descer e subir é insight do Assman, só me restou fazer as associações cabalísticas) – o caminho da serpente. A serpente, um animal tão famoso no Egito e no imaginário Egípcio.
Agora, se me derem licença, é hora de abandonar um pouco Assman, Reinhold e os estudos mais pautados pela ciência e de começar a ir mais a fundo (nem tanto assim, na verdade) elucubrações típicas do pensamento mágico (queria eu ser tão criativo quanto Kenneth Grant). Serei breve, juro. Podemos pensar então que a religião exotérica está preocupada na divisão do uno. É um culto às multiplicidades e às criações e são adoradas todas as coisas que vem da unidade. Se olharmos para a árvore da vida, de Kether as coisas vão se “dividindo” e ganhando novas faces até chegarmos ao Reino e lá a cristalização atingiu seu ápice. E onde estamos? Ora, em Malkuth – na materialização e envoltos pela materialização. Desta maneira, o exoterismo seria um fazer e um pensar de se colocar mais e mais dentro da manifestação. Não há nada de errado nisso. Não é esse meu ponto, por favor. Entender a manifestação e saber navegar nela é preciso e importante. Entendamos que estou falando de uma questão de foco. Por esse viés é o Deus que emana para nós e nós olhamos para ele apenas na condição de quem está manifestado.
Porém, quando vamos para os mistérios maiores ou para o esoterismo- a coisa inverte e temos a serpente que sobe a Árvore. Agora, vamos adiante, indo “contra a corrente” da manifestação e saindo do pluralismo para irmos para o uno. A busca é outra: queremos nós chegar até a emanação de Deus, de tal maneira que estaremos (se tudo der certo) cada vez mais perto da fonte. É por isso, talvez, que a Alquimia, a Teurgia e a Astrologia são o tripé do Hermetismo – esoterismo puro. Reparemos que essas três “ciências” estão interessadas em reverter a condição humana. Se no exoterismo aprendemos talvez a aceitar a condição humana, aqui nós estamos interessados em desafiar esse status. Com a Alquimia, queremos pegar o nosso chumbo e transformar em ouro – ou seja, queremos ficar mais refinados – e mais “leves”, mais sutis. A Astrologia olha para o céu e para o além, o além que está fora do nosso mundo mais próximo. A Teurgia, finalmente, está interessada em falar com a coisa divina mais propriamente e mais aproximadamente. Ora, são três coisas que nos levam para mais longe da nossa existência mais ordinária.
Assim, a desilusão mostraria (em um primeiro momento) ao iniciado que o homem, de alguma maneira, parte da manifestação, consegue retornar ao ponto de origem. A desilusão, portanto, não tem um viés negativo – mas de quebra da ilusão. A ilusão seria que estamos cristalizados e que nossa condição de criatura é perene. Entretanto, se lembrarmos da serpente, veremos que ela nos ensinou a irmos atrás do que não é permitido, ou melhor, a lançarmos nosso olhar para além do que está manifestado e “escrito”. Vejamos que pegar o fruto é ir ao âmago do ponto, ir além do limite que se impõe normalmente. Logo, não por acaso é o caminho da serpente, a serpente que adornava tiaras Egípcias antigas, é o que mostra ao ser humano que é possível pegar o fruto – e para isso – é preciso, pelo menos mexer na árvore.
Precisamos nos livrar da ideia de que “maiores” e “menores” impliquem em hierarquia ou que o exotérico apresente algo mais nobre do que o esotérico. A questão é, novamente, o foco. E nisso, eu insisto: sem a base exotérica ou sem a base dos mistérios “menores”, o esoterismo não fará sentido ou não chegará muito longe. Notem que o primeiro passo de um caminho esotérico começa justamente no local do qual se ocupa o exotérico, pois é onde nossos pés estão firmemente plantados – na manifestação palpável. Afinal, é preciso, ter as fundações da condição da manifestação bem compreendidas e dominadas para que se tente ir além. É preciso notarmos que pela Cabala (e pelas sociedades mágicas organizadas pela Árvore da Vida) não se começa o desenvolvimento por Yesod, mas sim por Malkuth (fora ou já dentro), podemos supor que essas coisas se encontram necessariamente. Ou seja, no fim, essa bipartição (estritamente) é uma ilusão – e agora eu lanço uma pequena polêmica, pois lembremos que a iniciação é a quebra de ilusão. Logo, o que há senão uma mesma verdade? É coisa para se pensar.
Demos então uma volta, falando do livro do Assman (e sei que fui muito injusto com seu livro “Moisés, o Egípcio”, do qual eu tirei quase toda a parte histórica que discuti aqui) e puxando figuras históricas e falando de teorias que foram cair na Maçonaria. Enfim, isso tudo pode ter de alguma maneira influenciado o que pensamos e consumimos de Hermetismo e, com isso, chegamos a uma divisão dos mistérios (menores e maiores), que eu tentei colocar um pouquinho no mundo nosso de cada dia. É claro, isso tudo é um exercício de pensamento. Um estudo para que possamos pensar melhor o papel do exoterismo e do esoterismo e de como encaramos nossos caminhos.
Talvez eu tenha escrito o texto mais confuso da minha vida. Se foi assim, peço desculpas ao leitor que chegou até aqui. Espero que, pelo menos, eu tenha conseguido despertar alguma reflexão – é o que geralmente tento com esses textos.
Créditos na imagem: UOL
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