Dançam os guardiões dos portais entre as dimensões, transitam entre o aqui e o acolá. Riem da nossa cara, danados, sabem que o equilíbrio mora no desbalanço. E nós aqui, bandeiras ao alto pela permanência da pele, da carne, da juventude, da estabilidade econômica, da alma imortal (mas com esse meu rostinho, claro), de coisa qualquer que o valha!
Dançam, veja bem. Ou, em bom mineirês: Ó pcê vê. Não estão parados, de dedo em riste, separando o que é certo do que é errado. A pena, aqui, voeja livremente.
Dançam, além/aquém da dualidade.
Vamos à Morte então, transição entre transições. Suprema ode à unidade não uniforme da Criação. Fragmentos que nascem enquanto outros morrem, ao sabor das diferenças, à cadavérica constatação duma original semelhança, traço comum.
Caveiras somos, senhorxs e senhorxs! Os ossos, essas velhas testemunhas.
Deixemos à Justiça a prerrogativa da separação entre as partes! Eu quero é o veio d´água que nos une, com graça e desgraça, com paixão, com dor, e cria o que de fato É, e não o que gostaríamos que Fosse. Jaz entre a Essência e a Beleza, sendo a chave que transforma o indivíduo em comum-unidade, mortinha da silva, cadavérica Verdade:
Estamos todos Entre, vulneráveis frente a um degradê infinito de experiências possíveis.
Entre o bem e o mal,
Eu superior e Eu inferior.
Entre o claro e o escuro,
entre a vida e a morte,
entre o começo e o fim,
entre o nascimento e o fenecimento,
Estamos, passageiramente, fazendo escolhas até a Morte, num mundo bem mais multicolorido do que preto no branco: a galera LGBTTQIA+ já está avisando tem uma cara. Às vezes tão passageiramente que temos a impressão de sermos super materiais, tão sólidos quanto qualquer holografia. Combinamos de chamar essa holografia de Verdade, de corpo físico, de gênero, pois bem. Mas o tempo não pára, e há algo para além dele, inignorável, e nós aqui não Somos, só Estamos, sussurra aquela vozinha que você conhece bem.
A ilusão de Ser pra sempre.
De poder Ser pronto e acabado.
De seguir uma linha de pensamento só.
O eldorado esquerdo da manutenção do Eu após a morte física, pela aplicação cirúrgica da vontade.
(“Sou assim e pronto, meu mapa astral que falou”, elx disse.)
Nada disso se torna inquestionável só porque eu quero. Porque eu convenciono assim, tenho adesão social à ideia, me curtem e me seguem e me parabenizam pela clareza reta do meu dogma… Porque assim me veem os que permito ao meu redor, e porque dissipo à força de toda a minha intenção mágica, e do poder do botão de unfollow, as possíveis discordâncias. Nada disso se torna inquestionável só porque eu quero. Assim como meus pensamentos não cessam de fluir para todos os lados minha gente, ainda que…
aqui,
nesta página de internet,
eu me atenha à convenção de permiti-los fluir só de cima pra baixo, linha após linha, de eu superior para eu inferior, se de algo valer a metáfora.
“A liberdade verdadeira”, conquista de quem não teme as pequenas Mortes e Vidas e Mortes que nos povoam dentro, as discordâncias e os paradoxos, “é de fato inaprisionável”, dizem as boas línguas. Algo vive livre para além dos véus das convenções de realidade… algo que a Morte vela como Mãe devotada. Algo que permanece distante de todxs os que a temem demais da conta. Ah… algo selvagem mora para além das convenções. E mortífero.
Nem tente fugir, amizade… a amazona sem carne e sem pele chega sempre. Como uma súbita consciência expandida, da qual voltamos com gostinho de totalidade nos lábios e a consciência amarga, mas benéfica, das arestas dos nossos pensamentos. Os guardiões dos portões entre mundos dançam, e isso é tudo. Impermanências.
Não tente fugir, amizade,
não escape para sempre para o método científico,
não corra para as colinas de um qualquer forjado apriorismo, de uma bem falada tradição.
Tudo está entre, metá-metá,
impuro que só vendo,
num morte-e-vida que assevera a estrada,
e que tornando-a árdua faz dela a pedra bruta que amola o tino,
que afia a escolha, nutre a empatia e degola
qualquer ilusão recém-nascida de perenidade.
“O que a vida quer da gente é coragem”, não dizia Guimarães Rosa?
“Maturidade, fia”, finalizou a velha senhora encaveirada no meio da encruzilhada. “Ela que dança bem, nesse baile de Vida e Morte”.
Foto por pixabay
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