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À Estrela


"Noite estrelada sobre o Ródano", pintura de 1888 do holandês Vincent van Gogh.

“Un faro quieto nada sería, guía mientras no deje de girar. No es la luz, Lo que importa en verdad son los doce segundos de oscuridad.” - Jorge Drexler / Victor Hugo A fé, a esperança… a luz no caminho, enfim. Tal qual estrela para o antigo navegante astrônomo, tal qual farol para o cartógrafo viajante moderno, tal qual mestres para seus discípulos (em qualquer tempo e espaço), o negócio delas é inspirar, fornecer referência a quem busca orientação. Esses focos de referência vivem suas vidas isoladas e sustentadoras. Muitas vezes alheios à importância de desempenhar seus papéis, por vezes subestimando o tamanho do raio que circunscreve sua influência no mundo, lá longe onde reinam, soberanas e puras, almas nuas em pêlo. São o eixo cujo comportamento fixo nos permite tomar consciência do movimento, do fluxo, das mudanças. Tudo existe “em relação a”, não é mesmo? Se tudo tudo mesmo fosse movimento caótico e desordenado, sem métrica possível ou padrão reconhecível… me pergunto: seria possível algum conhecimento compartilhado da realidade? Não seríamos uma profusão amorfa de pontos de vista que se sucedem multicoloridos, frente a olhos perplexos que só reagem, não agem? “Talvez…”, sussurra o céu noturno à beira-mar, em noite de nuvens e sem luz elétrica, no breu. Talvez precisemos mesmo de referências, e talvez por isso as estrelas brilhem no céu noturno; e talvez por isso as pessoas mentoras brilhem no céu iniciático; e talvez por isso as luzes dos faróis girem sobre seus eixos em meio ao mar bravio. São todos uns oferecidos, misturando em seu cadinho um cado de saturno, pra definir os limites da senda; de lua, pra intuir as curvas e alterações na rota; de vênus, pra adoçar as fricções e afetos no meio do caminho. Oferecem-se, enfim, femininamente, como cálice receptivo à relação que se estabeleça entre o referencial e o buscador, essa sim a fonte de qualquer orientação possível. Não, navegante, não ore à Estrela pedindo a salvação. Antes reconheça a sua posição relativa a ela e, então, faça você seus cálculos astronômicos e suas escolhas de rota, com mais segurança e menos solidão. Esperança e Fé, Referências e Orientações, essas centelhas que morrem se não forem bem alimentadas com atitudes pertinentes à jornada. Não, viajante, não fique preso ao alívio da sensação de enxergar o farol luminoso, quando perdido em mar aberto, em meio à angustia silenciosa do naufrágio. Permita que o alívio seja seguido da análise, da abertura a aprender com o feixe de luz que… quanto tempo demora mesmo para dar a sua volta inteira? O que esse tempo me diz da distância a que estou da costa? O que, enfim, o náufrago pode aprender sobre si mesmo, enquanto observa o farol e avalia as informações que ele oferece, na comparação com sua própria posição atual? Está aí, na relação consciente entre o náufrago e o farol, mais precisamente na disposição para aprender com ela, a real orientação que tornará possível ao náufrago o retorno seguro à terra. É também como ensina o mestre Jorge Drexler, estrela que brilha no firmamento da poesia cantada uruguaia. Aliás, é na relação com ele que oriento muitos dos meus afetos tão latinoamericanos, já que o papo aqui é sobre referências. Verdadeiro mago das palavras do meu céu particular de poetisas e poetas (indico especialmente os álbuns Eco e 12 segundos de oscuridad), Drexler ensina, na sua música 12 segundos de oscuridad, que não é exatamente a luz emitida pelo farol que orienta as embarcações, mas a ação humana de observar com atenção e paciência o giro da sua luz, sustentando enquanto isso a insegurança que a escuridão proporciona, para só então tomar decisões que favorecerão seu melhor direcionamento mar afora. Resumindo: a Estrela, o farol e o mestre só guiam quem sabe adotar a postura de ser guiado, uma postura que pode até parecer só passiva, mas que é ativa e passiva, em turnos: calar, querer, saber, ousar, calar de novo, querer de novo... O óbvio, senhoras e senhores, mais uma vez cumprindo seu ofício de abordar os fundamentos da realidade, fundamentos que talvez estejam se tornando um pouco turvos num mundo em que o náufrago não se dá ao trabalho de aprender a calcular distâncias, afinal tem um apêpê pra isso e tudo o mais. Ah, as facilidades incapacitantes que nosso mundo de hoje oferece (a quem possa pagar), e seu potencial para nos tornar espectadores desatentos da nossa própria caminhada… mas isso é assunto pra outro dia, pra outra relação. Tudo isso dito, resta algum conselho que possamos dar ao discípulo na relação com seu mestre ou sua mestra, sua Estrela-guia? Haverá algo mais que possamos dizer ao caminhante que observa de longe a bela jovem nua com seus cântaros e Estrela na coroa, vexadíssimo em dela se aproximar? Não, discípulo, não repouse à luz brilhante de quem te guia, como se contemplar ou julgar essa figura fosse o seu ponto de chegada. Talvez possamos dizer que a guiança não é tanto sobre quem essa figura é, como ela leva sua vida e faz suas escolhas, mas sobre que tipo de relação estamos dispostos(as) a estabelecer com ela, ou melhor, com aquela senda que a Estrela humildemente se presta a refletir, alumiando a caminhada de quem chega receptivo(a) à relação, ao aprendizado mútuo, à expansão mútua, enfim. Encontros. “De poco le sirve al navegante que no sepa esperar... pie detrás de pie, no hay otra manera de caminar” - Jorge Drexler / Victor Hugo

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